A babel teológica por trás do apoio de evangélicos aos Estados Unidos e a Israel
Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil
A grande adesão de segmentos evangélicos na defesa incondicional de Israel no conflito que foi deflagrado em 7 de outubro de 2023 pelo Hamas não é uma novidade, nem uma exclusividade brasileira, mas chama a atenção por contradições, pelo seu alinhamento à extrema direita global e pelo seu interesse de intervir no Estado.
Se, de um lado, memes nas redes sociais dão conta de uma possível incoerência no apoio de cristãos a um grupo religioso que nega veementemente a divindade de Jesus Cristo, de outro se vê um fenômeno originado em uma grande miscelânea de pensamentos, alguns até mesmo divergentes.
“Trata-se de uma babel teológica.” É o que diz o pastor Hermes Fernandes, doutor em Ciência da Religião pela Faculdade de Ciências Filosóficas e Teológicas do Estado do Rio de Janeiro e doutor Honoris-Causa em Escatologia pelo Instituto Teológico-Filosófico Latino-Americano. Leia-se como escatologia o segmento da teologia que investiga o “fim dos tempos”.
Não à toa, o pastor menciona o mito bíblico para estabelecer a comparação. No Gênesis, os homens, que até então falavam uma mesma língua, almejavam construir uma torre para alcançar os céus. Deus teria provocado confusão ao estabelecer que esses homens passassem a falar diferentes idiomas, evitando assim que se entendessem para executar o ousado projeto.
Psicólogo, teólogo e bispo consagrado pela International Christian Communion (comunhão que reúne bispos de tradição anglicana/episcopal dos cinco continentes), Fernandes relata a mistura de duas visões bíblicas que “têm muito mais pontos de divergência do que de convergência”, as teologias de domínio e de dispensacionalismo.
“Eu não sei como essas duas convergiram, mas eu sei que o ponto de convergência foi o neopentecostalismo. Ele conseguiu prover um solo fértil para o cruzamento dessas teologias, até porque o neopentecostal não é muito afeito a um aprofundamento teológico. O neopentecostal é mais de sensações, aquela histeria toda, né?”, registra.
Foto: Acervo Pessoal
Para Fernandes, confissões evangélicas mais tradicionais e um pouco mais profundas teologicamente conseguem perceber que não tem como casar a teologia de domínio com o dispensacionalismo.
“São coisas muito diferentes. Mas água e óleo conseguem se misturar dentro do neopentecostalismo, por incrível que pareça”, exclama o religioso.
Abraçada pela maioria dos evangélicos do Brasil, a escatologia dispensacionalista acredita que Deus tem dois povos na terra (os judeus e os cristãos) e, por consequência, duas agendas. Para o primeiro, um propósito mais terreno; para os cristãos, que são denominados de a Igreja, celestial.
Já no enfoque de domínio, a crença é no chamado destino manifesto, que aponta os Estados Unidos como o novo Israel e detentor da missão de construir no mundo a nova Jerusalém. “Eles (defensores da tese de domínio) acreditam que Deus tem um povo só, que esse povo é a Igreja e que a Igreja é o novo Israel”, explica Fernandes.
Por essa disparidade com a visão dispensacionalista, a de domínio não nutre o mesmo apreço por Israel.
“Pelo contrário. Eles têm até uma certa aversão ao povo judeu. E eu digo ao povo judeu, não digo ao Estado de Israel. Não os classificaria assim como antissemitas propriamente, mas que essa aversão é por causa da crença de que o povo de Deus é a Igreja”, acentua o pastor.
A mistura da água e óleo consegue fazer dispensacionalistas que viram na formação do Estado de Israel em 1948 o pontapé inicial de uma série de profecias que deverão culminar com a volta de Jesus e no arrebatamento de cristãos no Armagedon – a batalha final de Deus contra a sociedade humana iníqua –, com o que Fernandes identifica como o maior problema da escatologia de domínio.
“Eles querem trazer para os dias atuais as leis de Moisés. É como se Deus tivesse o objetivo de instaurar no mundo uma teocracia, que eles chamam de reino de Deus”, explica.
“Como na teologia de domínio o papel da igreja é estabelecer o reino de Deus na Terra através das leis, eles chegam a defender, por exemplo, a instituição da escravidão”, ressalta Fernandes, ao lembrar de um dos expoentes dessa vertente de pensamento que viria a um evento da Consciência Cristã, uma associação conservadora de igrejas evangélicas no Brasil, durante o Carnaval deste ano. A referência é ao pastor Douglas Wilson, que cancelou sua presença diante da repercussão.
Wilson defende o direito de cristãos escravizarem negros, com o falso argumento de que essa é uma autorização presente na Bíblia.
Ele é um dos principais líderes do chamado “nacionalismo cristão”, o qual se envolveu na invasão do Congresso norte-americano em 6 de janeiro de 2022 para tentar impedir a posse de Joe Biden.
“Eles defendem também a misoginia com muita naturalidade porque, para eles, Deus fez o homem superior à mulher; eles são xenófobos, porque defendem os Estados Unidos como o novo Israel. Eles defendem o armamento da população, a pena de morte. Tem teólogos de domínio que são a favor da pena de morte aplicada a homossexuais. Tudo isso vem no bojo porque eles vão pegando trechos do Velho Testamento para justificar”, completa Fernandes.
Uma coisa é certa para o teólogo nessa mistura de visões bíblicas que, mesmo antagônicas, está cada vez mais influenciando a população evangélica no Brasil.
“Cristo passa muito longe disso tudo. E não há interesse deles (pastores neopentecostais) em pregar o Evangelho, a graça, a nova aliança. Não há porque isso é contraproducente do ponto de vista financeiro. Isso não gera nada”, lamenta Fernandes.