Democracia brasileira frágil, mas à prova de golpes
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
O livro Por que a Democracia Brasileira Não Morreu? (Cia das Letras, 2024, 272p.), dos cientistas políticos Marcus André Melo e Carlos Pereira, foi recebido como uma provocação nos meios acadêmicos. Isso porque os autores sustentam que a tentativa de golpe para impedir a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e manter Jair Bolsonaro (PL) no poder nunca foi, de fato, uma ameaça real. Professor da Fundação Getúlio Vargas – Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (FGV-Ebape), Carlos Pereira é PhD em Ciência Política pela New School for Social Research. Colunista do jornal O Estado de São Paulo, ele foi professor visitante das universidades de Stanford, Sorbonne, Oxford, Hertie School, Universidade de São Paulo (USP) e Colby College; professor da Michigan State e pesquisador da Brookings Institution. Nesta entrevista ao Extra Classe, ele esclarece esse enigma proposto pela obra e afirma que a democracia brasileira se reveste de mecanismos capazes de resistir a esse tipo de investida antidemocrática. Ao abordar a literatura que versa sobre a erosão das democracias, o autor explica que há muitos fatores, além da perspectiva de quem agride os processos democráticos, a serem levados em conta
Foto: Andressa Anholete/SCO/STF
Extra Classe – A tentativa de golpe foi discutida nas Forças Armadas. O comandante da Marinha assentiu. No alto comando do Exército, um general se dispôs a aderir mediante ordens do então presidente. Estou me referindo a tal minuta do golpe. Generais de quatro estrelas de dentro do governo pressionaram os chefes do Exército e da Aeronáutica. Diante de tudo isso, é possível afirmar que não foi uma ameaça real?
Carlos Pereira – Sim. E a explicação está na ineficiência do sistema político brasileiro. O que eu quero dizer com isso? É que o sistema político brasileiro é dotado de muitos pontos de vetos institucionais e partidários. Se isso, de um lado, gera muita ineficiência governativa, dificulta que o presidente de plantão faça valer e aprovar a sua agenda, por outro lado, esse mesmo sistema cria obstáculos endógenos para que presidentes com perfil autocrático implementem políticas iliberais. Então, mesmo quando militares do calibre do ex-comandante da Marinha namoraram com propostas golpistas, a chance de que isso (o golpe) viesse a dar certo era muito baixa, ou quase inexistente. Em função do próprio desenho institucional que cria dificuldades imensas para que um presidente com perfil autocrático consiga convencer todos esses atores dessa agenda de fragilização da democracia.
EC – Mesmo incompetente, ao seu estilo, Bolsonaro insuflou e continua insuflando massas que foram retiradas do que há de pior no pensamento político mundial. O ápice foi o 8 de janeiro de 2023. Se a tentativa de golpe para os senhores não foi uma ameaça real, o quebra-quebra na Praça dos Três Poderes foi o quê?
Pereira – Exatamente isso que você definiu. Foi uma tentativa desesperada de não reconhecer a derrota. Foi uma tentativa desesperada de insuflar a sociedade contra o resultado eleitoral. Mas as respostas foram dadas de forma imediata. No dia seguinte, o presidente Lula, junto com a presidente da Suprema Corte (Rosa Weber), junto com o presidente da Câmara dos Deputados (Artur Lira), do Senado (Rodrigo Pacheco), com vários governadores, de mãos dadas, marchou perante os prédios públicos, sinalizando o compromisso de todas essas instituições com o processo democrático, a despeito dessa tentativa desesperada de quebrar a democracia.
EC – Se o grande número de partidos é um antídoto institucional contra iniciativas iliberais e antidemocráticas de presidentes populistas, no caso do Brasil, como explicar o que ocorreu nos Estados Unidos? Diria que existe uma extrema direita global sem pudores em esticar ao extremo a corda e uma ameaça constante?
Pereira – Bom, eu não sei dizer exatamente o quanto essa extrema direita é coordenada de maneira global, mas, de certa forma, eu entendo perfeitamente que existe um ambiente de frustração importante com as democracias, especialmente a partir da crise de 2008, e que vários setores da sociedade se sentiram excluídos e mais susceptíveis a apelos populistas e antidemocráticos. Em vários países, aconteceu de presidentes eleitos democraticamente se valerem da sua eleição sob essas bases para concentrar mais poder e para fragilizar as organizações de controle. Entretanto, nem em todas as sociedades essa agenda prosperou. Pelo contrário, foram pouquíssimas as experiências em que iniciativas de extrema direita ou de extrema esquerda, como, por exemplo, aqui na Venezuela, prosperaram. A literatura sobre erosão democrática só percebe essa espécie de jogo a partir do agressor, mas não leva em consideração o desenho institucional de cada um desses países, nem tampouco a qualidade e a vigilância da própria sociedade, da mídia, dos sindicatos, dos grupos sociais que se formam, dos empresários. Sociedades são muito diferentes, e projetos autoritários vão ter mais ou menos condições férteis ou inférteis de prosperarem. No caso brasileiro especificamente, o terreno é muito infértil para saídas autoritárias. Então, não é necessariamente o fato de ter chegado um populista de extrema direita que nós nos vulnerabilizamos. Especificamente em relação ao caso americano, em função do sistema lá ser presidencialista bipartidário, eu percebo que aquele sistema de lá, em que pese ter uma das democracias mais longevas, é mais vulnerável do que a nossa democracia, dado que é mais provável que um partido consiga maioria nas duas casas legislativas em torno de um projeto autoritário do que no caso brasileiro, em que é raríssimo acontecer de o presidente conseguir ter maioria dentro do Legislativo.
EC – Por que as teorias da erosão da democracia a partir dos próprios mecanismos democráticos não são totalmente confiáveis?
Pereira – Essa literatura está sendo adaptada. Inclusive, os próprios autores que escreveram o livro Como as Democracias Morrem (Steven Levitsky e Daniel Ziblatt), recentemente, publicaram um artigo reconhecendo que não é necessariamente a eleição de um populista extremo, seja ele de esquerda ou de direita, que vai fragilizar a democracia. É preciso levar em consideração o desenho institucional e a capacidade da sociedade de se organizar, de reagir, de resistir e de ser resiliente.
Foto: Lula Marques/Agência Brasil
EC – Voltando ao 8 de janeiro e ao Capitólio, para o senhor, as nossas respostas foram mais eficazes do que as respostas que estão sendo dadas nos Estados Unidos?
Pereira – Não resta dúvida. A Suprema Corte do Brasil puniu vários dos envolvidos com penas duríssimas; vários foram presos e ainda há um processo de investigação em que o próprio ex-presidente Bolsonaro pode vir a ser punido por isso. Ele está sob suspeita, inclusive, de ser um dos envolvidos no processo. Então, estamos ainda esperando como é que vai se dar essa investigação e se ele, de fato, vai ser indiciado, e como vai se dar essa decisão. Então, com certeza, a resposta brasileira ao conflito semelhante ao que aconteceu nos Estados Unidos foi muito mais efetiva.
EC – Apesar de as instituições terem funcionado, a passagem de Bolsonaro pela presidência não criou, de certa forma, um desarranjo entre os três poderes ao implantar um presidencialismo orçamentário?
Pereira – Bom, esse processo de fortalecimento do Legislativo vis-à-vis do Executivo não começou no governo Bolsonaro. Começou já no governo Dilma, quando ela aquiesceu a impositividade das emendas individuais. E com a chegada de Bolsonaro, ele também implementou a impositividade das emendas de bancada, das emendas coletivas. Mas a estratégia que Bolsonaro utilizou se viu derrotada. Porque no início de 2020, especialmente quando estourou a pandemia e os escândalos de corrupção que envolviam seus familiares, Bolsonaro não teve outra alternativa a não ser buscar no Centrão uma coalizão de sobrevivência para lidar com a sua governabilidade. Então, de certa forma, a estratégia inicial dele – de associar presença livre de coalizão, que tentava passar como uma presença livre de corrupção –, ela fracassou. E, no momento em que ele procura os quartilhos do Centrão, foi um sinal claro de domesticação, de que aquele presidente se submeteu às regras do jogo multipartidário. E o orçamento secreto, que foi a forma encontrada de lidar com esses constrangimentos, também foi corrigido pela Suprema Corte. O STF considerou esse mecanismo de transferência de recursos para o Legislativo inconstitucional. Então, a pergunta que se poderia fazer é se as instituições teriam capacidade ou não de se antecipar a esses problemas. Mas é muito difícil cobrar isso de qualquer regime político. O mais importante é saber se, diante das agressões a um regime democrático, o sistema foi capaz de responder à altura. E o Brasil ofertou respostas à altura capazes de constranger esse presidente.
EC – Uma coisa é certa. Há um clima mundial de ascensão da extrema direita no mundo. Trump, apesar de condenado, pode ser eleito novamente nos Estados Unidos. A extrema direita francesa e alemã tiveram vitórias expressivas para as eleições do Parlamento Europeu. Então, para finalizar, o livro diz que nosso Congresso funcionou como uma resistência natural. Mas, levando em conta que, cada vez mais, temos um Parlamento forjado nas bases que sustentou Bolsonaro eleições após eleições, mais fisiológico e de um conservadorismo fundamentalista, não estamos expostos ao risco de uma nova aventura autoritária, quem sabe mais competente como a de Viktor Orban, na Hungria?
Pereira – É pouco provável que isso aconteça. Eu acho que existe uma preferência conservadora natural na democracia brasileira. Eu vejo isso, inclusive, como um sinal de maturidade. O pensamento conservador faz parte. Existe um contingente importante de religiosos no Brasil que são conservadores. O grande problema é quando esses conservadores decidem jogar fora do jogo. Mas a alternância do poder perante experiências mais progressistas ou experiências mais conservadoras, desde que o derrotado reconheça o resultado do jogo e jogue de novo no futuro e acredite que pode vir a ser governo no futuro, isso faz parte da maturidade da democracia. Então, assim, como disse, eu não vejo necessariamente como um problema o crescimento do pensamento conservador. Eu vejo isso muito mais como fluxo e refluxo. Do mesmo jeito como você identificou que na Europa, na França e na Alemanha, a bancada de extrema direita aumentou de forma vigorosa para o Parlamento Europeu, por outro lado, perdeu em outros países como Dinamarca, Suécia, Portugal. A extrema direita, por exemplo, foi muito votada para o Parlamento Português, mas foi derrotada para o Parlamento Europeu. Então eu acho que tem mais nuances nesse jogo e, para mim, não está claro que inexoravelmente estejamos, que o mundo esteja caminhando nesta direção. O jogo está sendo jogado e cada uma dessas democracias tem dado respostas possíveis e à altura desse jogo.
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Pereira – Mas, essas pessoas vão ser derrotadas na vida. Quem joga fora do jogo, o sistema político brasileiro é tão virtuoso nesse sentido, que quem, de certa forma, joga fora do jogo, ou é punido, ou é expulso do jogo. É como se tivéssemos anticorpos capazes de nos proteger contra esses atores. O pensamento conservador que quiser jogar dentro do jogo faz parte. E é legítimo que esse pensamento consiga ser majoritário em alguns momentos e minoritário em outros momentos. Isso faz parte da vida democrática. O problema é a quebra do jogo. Eu acho que estamos longe disso. Eu acho que a experiência do governo Bolsonaro e as respostas que as instituições e a sociedade foram capazes de dar mostram o quão a democracia brasileira está viva, ativa e vigilante.