POLÍTICA

Campanha de fake news leva Prefeitura de Ivoti a censurar teatro para bebês

Movimento de censura liderado por candidaturas políticas levou à retirada da peça infantil Cuco da programação da 41º Feira do Livro de Ivoti
Por Elstor Hanzen / Publicado em 1 de outubro de 2024

Campanha de fake news faz Prefeitura de Ivoti censurar teatro para bebês

Foto: Cuco/Divulgação

Foto: Cuco/Divulgação

O premiado espetáculo teatral Cuco – A linguagem dos bebês no teatro – foi retirado da programação cultural da 41ª Feira do Livro de Ivoti às vésperas da apresentação. A censura aconteceu por conta de um movimento comandado por candidaturas da extrema direita daquele município que acusaram a peça de promover “doutrinação”.

O caso teve seu ápice no último domingo, 29 de setembro. Os pais que levaram seus filhos à edição 41ª da Feira do Livro de Ivoti para o espetáculo ficaram impedidos de assistir. A peça teatral foi tirada às pressas da programação cultural pela prefeitura na última hora, fazendo com que as crianças de zero a quatro anos ficassem sem poder ver e participar da exibição.

Procurada pelo Extra Classe para se posicionar sobre o episódio, a Prefeitura de Ivoti se limitou a este comunicado. “A fim de evitar que possíveis manifestações de protesto pudessem por em risco a continuidade da Feira do Livro, optou-se pelo cancelamento da apresentação”.

Ao grupo teatral, porém, a Prefeitura justificou o cancelamento como sendo para preservar “a integridade” dos artistas.

A reportagem apurou que a pressão para o cancelamento foi feita pelo coordenador de seis candidaturas do Partido Liberal (PL) no município, Edvaldo Xavier Gomes.

Com informações distorcidas, a campanha de desinformação sobre o espetáculo partiu do grupo de Whatsapp Pais Atentos, que diz defender valores morais, cristãos e éticos da família. O grupo vem atuando cotidianamente na comunidade para exclusão de livros e tentativas de cerceamento nas escolas.

Sobre o caso recente, a denúncia chegou ao prefeito Martin Cesar Kalkmann (PP) como um alerta à população sobre supostas “doutrinações de gênero” contidas na peça teatral.

“Já conversei com o prefeito (Martin) e com outras pessoas ali. Convocou a equipe gestora já tirou do ar a programação, e a ideia é cancelar o evento”, diz Xavier em mensagem enviada ao grupo.

Na sequência, afirma que pediu exoneração (da secretária de Cultura e Turismo do município, Raiama Trenkel) e que ele próprio está em campanha eleitoral.

“Nós do PL, vocês sabem que eu tô atuando na campanha, coordenando a campanha de seis candidatos a vereadores. E estamos apoiando uma linha de pensamento na majoritária e não vamos admitir isso”.

Outro integrante do grupo WhatsApp Pais Atentos responde que também interferiu para cancelar o espetáculo.

“Ô Roger, tudo bem? Sim, eu já mexi os pauzinhos”, explicando que a secretária de Cultura havia contratado um pacote para o evento e “não se tocou que era aquele imbecil do Paulo (Fochi), o coordenador pedagógico da peça. Então ele já pediu para retirar, não vai vir, vai ser retirado. E já deu um puxão de orelha na secretária”.

Ele se refere ao pedagogo Paulo Sergio Fochi, doutor em Educação, coordenador do Curso de Especialização em Educação Infantil da Unisinos e professor do curso de Pedagogia da Instituição.

Perseguição ao professor

O pedagogo afirmou ao Extra Classe, que existe uma perseguição contra ele há mais tempo promovida justamente pelos Pais Atentos, de Ivoti.  “Me acusam de doutrinador de gênero”, diz.

“Em abril desse ano fizeram uma série de ações de ataque a mim, falando mentiras, descontextualizando falas e etc. Por fim, organizaram uma reunião on-line para me difamar e falar um tanto de bobagens a meu respeito. Eu fiquei sabendo, entrei e explodi. Estava recebendo toda semana uma série de prints de mentiras a meu respeito criada por esses pais e aquele dia foi meu limite. Não me orgulho disso, mas tudo tem limite e eu cheguei no meu”.

Segundo o Fochi, o que incomoda esses pais é que ele faz a defesa de que a escola precisa ser pra todos e não para alguns. “Aliás, o que realmente incomoda essas pessoas é que sou um homem gay, com trabalho reconhecido no mundo e que defende uma escola que não continue reproduzindo as violências que eu vivi na minha experiência escolar. É tão delirante o discurso dessas pessoas que eu nem estudo gênero. Então não há nem um problema de interpretação deles, por qualquer limite cognitivo. A questão é perseguição mesmo. É orquestrar a desinformação”.

Campanha de mentiras

Mas parece que os Pais Atentos não prestaram tanta atenção assim. Ao que tudo indica, o espetáculo não contém nada de polêmico ou que fira os tais valores alegados por seus censores. Pelo menos é o que sugere a nota pública do grupo teatral assinada pelo seu diretor artístico, Mário de Ballentti.

“Certamente, nenhum dos censores assistiu ao espetáculo teatral. Não bastasse o cancelamento, o coordenador pediu a exoneração da Secretária de Cultura e Turismo. A secretaria comunicou o cancelamento por telefone, na quarta-feira, 25 de setembro, mas até o domingo, dia 29, o grupo não foi oficializado. Na ligação, informou que o motivo era a preservação da integridade do elenco”, relata. (Leia na íntegra no final desta matéria)

O diretor do espetáculo e coautor do roteiro se diz perplexo com o cancelamento da apresentação. A divulgação da peça constou como atração nos sites de turismo e jornais da Serra por mais mais de um mês vinha sendo veiculada nas redes sociais da Prefeitura.

“Nunca vivi esta situação. Nossa companhia tem 33 anos de existência, já apresentamos nossos espetáculos em vários festivais internacionais na Itália, França, Espanha e Canadá e em todos os estados brasileiros. Que tempos difíceis que o teatro está vivendo!, me lembra a década de 70 quando tínhamos que apresentar o ensaio geral para polícia civil antes da estreia”, protesta Ballenti.

Já o Sindicato de Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (SindJoRS) se solidarizou com o grupo teatral Caixa do Elefante. “O SindJoRS é contra qualquer tipo de censura”, enfatiza em nota.

Espetáculo de teatro premiado

A peça teatral é reconhecida pelo público e coleciona importantes prêmios no cenário gaúcho e brasileiro do teatro infantil.  Cuco – A linguagem dos bebês está na estrada desde 2015 e recebeu quatro premiações no Troféu Tibicuera – teatro infantil (melhor espetáculo, melhor produção, melhor cenografia e melhor direção.

Segundo a síntese do espetáculo, o trabalho é motivado por uma poética que parece ser uma das primeiras experiências lúdicas e estéticas dos bebês, o jogo entre o “esconder e o revelar”, “o cuco, um universo em que a surpresa do começo, da chegada, da primeira vez, transforma a manipulação de objetos do cotidiano em pequenas histórias. O cuidado em proporcionar um ambiente de conforto e segurança se reflete no cenário – constituído de um tapete higienizado, localizada no centro da sala e cercada por assentos para a acomodação dos pais, acompanhantes e dos filhos”.

Com roteiro e direção de Mário de Ballentti e pesquisa e concepção pedagógica de Paulo Fochi, “o formato arena da montagem possibilita um espaço de acolhimento e interação”. Esta iniciativa foi contemplada com o Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz tendo circulado por todo o todo Brasil.

NOTA DE REPÚDIO DA CAIXA DO ELEFANTE – TEATRO DE BONECOS – NA ÍNTEGRA

Acusado de “doutrinador”, espetáculo para bebês é retirado da programação da 41°Feira do livro de Ivoti. Os bebês e crianças pequenas, de 0 a 4 anos, da cidade de Ivoti/RS, ficaram sem poder assistir ao premiado espetáculo teatral Cuco – A linguagem dos bebês no teatro na programação cultural da 41ª Feira do Livro, prevista para o dia 29/09/2024. O espetáculo foi retirado da programação às vésperas da apresentação por determinação do prefeito, sem informar o motivo.

Produzido pela Caixa do Elefante Teatro de Bonecos, o espetáculo recebeu o Prêmio Tibicuera de Melhor Espetáculo, Melhor Direção e Melhor Produção, além do Prêmio Myriam Muniz de Montagem Teatral pela Funarte/MinC. Cuco é a primeira montagem teatral gaúcha para bebês e vem sendo apresentada há mais de 12 anos, já tendo realizado temporada no SESC de São Paulo, circulado pelo Palco Giratório do SESC Nacional em várias capitais brasileiras e por diversas cidades do RS, sempre com sucesso de público e crítica. Na peça, durante toda a apresentação, os bebês são acompanhados pelos seus pais e não são tocados pelos atores. Os bebês experimentam sons, cores e exploram objetos cênicos diversos, como bolas transparentes, sanfonados, pirâmides e tecidos. O espetáculo também tem sido apresentado em universidades e seminários de Educação Infantil como referência bem-sucedida em teatro para a primeira infância no país.

Uma campanha de desinformação sobre o espetáculo, partindo do grupo de Whatsapp “Pais Atentos” – que defende valores morais, cristãos e éticos da família -, chegou ao prefeito Martin Cesar Kalkmann (PP) como um alerta à população sobre supostas “doutrinações de gênero” contidas na peça teatral. A pressão para o cancelamento foi feita pelo coordenador de campanha eleitoral do Partido Liberal municipal, motivado tão somente por falta de cultura e puro preconceito. Às vésperas da apresentação no tradicional evento literário da “Cidade das Flores”, a peça foi retirada da programação do site da prefeitura sem nenhuma justificativa. Certamente, nenhum dos censores assistiu ao espetáculo teatral. Não bastasse o cancelamento, o coordenador pediu a exoneração da Secretária de Cultura e Turismo. A secretaria comunicou o cancelamento por telefone, na quarta-feira, 25/09, mas até o domingo, dia 29, o grupo não foi oficializado. Na ligação, informou que o motivo era a “preservação da integridade do elenco”.

A cidade de Ivoti é considerada referência na educação de qualidade no Estado, porém a proibição do espetáculo contradiz todas as práticas pedagógicas, privando as crianças pequenas do acesso à cultura, direito garantido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e pela Constituição Federal.

Como diretor do espetáculo e coautor do roteiro, estou perplexo com o cancelamento da apresentação. A divulgação da peça ainda consta como atração nos sites de turismo e jornais da Serra e há mais de um mês vinha sendo veiculada nas redes sociais da Prefeitura. Nunca vivi esta situação. Nossa companhia tem 33 anos de existência, já apresentamos nossos espetáculos em vários festivais internacionais na Itália, França, Espanha e Canadá e em todos os estados brasileiros. Que tempos difíceis que o teatro está vivendo!, me lembra a década de 70 quando tínhamos que apresentar o ensaio geral para polícia civil antes da estreia. Naquela época um censor ficava sentado com o texto nas mãos acompanhando as falas dos atores para conferir com o original liberado. Era horrível atuar.

O teatro virou um problema para as secretarias de educação e cultura, as escolas e eventos culturais estão com medo do teatro. De repente, pessoas incultas e reacionárias passaram a intervir diretamente no conteúdo das peças, como se tudo que falássemos estivesse destruindo valores morais, pondo em risco a integridade das crianças.

O problema maior é a dificuldade dos gestores com a desinformação de alguns pais seduzidos pela terra sem lei das redes sociais. O professor, a principal fonte de conhecimento em décadas passadas, perdeu a credibilidade argumentativa frente a fake news e a influencers incultos. O projeto pedagógico das escolas está subordinado aos desejos dos pais. Não se educa para a vida, mas para o mercado competitivo, o que acaba formando gerações de jovens frustrados. Vejo tudo como uma degeneração civilizatória.

O acesso à cultura pelas crianças é estratégico no processo de desenvolvimento cognitivo, fundamental para a alfabetização e a interação social. Nosso espetáculo foi criado para pais e cuidadores viverem uma experiência sensorial juntos aos seus bebês e crianças, em lugar tranquilo e acolhedor. Não podemos nos apresentar num local onde existe um público hostil procurando violações e abusos, coisas que não existem no espetáculo. Somos atores profissionais que estudam a primeira infância e suas especificidades, conhecemos os temas que estamos abordando para espectadores tão pequenos.

O teatro, a arte rainha da abstração e do pensamento criativo, sempre foi e será a grande manifestação artística, exercício da imaginação, ferramenta mental sem a qual não conseguiremos sobreviver num planeta tão caótico. É um crime proibir o acesso de crianças a uma peça artística infantil.

Mário de Ballentti

Diretor Artístico da Caixa do Elefante

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