POLÍTICA

Pesquisa mostra quem são os donos de Porto Alegre

Estudo revela a rede de influências de quem manda na cidade; ao todo são 532 pontos entre pessoas, organizações sociais, empresas, partidos e instituições privadas ou estatais
Por Elstor Hanzen / Publicado em 15 de outubro de 2024
Pesquisa mostra quem são os donos de Porto Alegre

Foto: Bruna Cabrera / CC 3.0

Em sua pesquisa, o cientista aborda as íntimas e intensas relações entre  indivíduos e empresas com um conjunto de agentes políticos que representam e defendem seus interesses e propostas no âmbito do Legislativo e do Executivo municipais

Foto: Bruna Cabrera / CC 3.0

Uma pesquisa conduzida por Marcelo Kunrath Silva, professor do departamento de Sociologia/Ufrgs, coordenador do grupo de pesquisa Associativismo, Contestação e Engajamento e vice-coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia – Participa, em pleno curso da pior enchente da história do Rio Grande do Sul, revela uma rede composta por 532 pontos – pessoas, organizações sociais, empresas, partidos políticos, instituições de ensino, eventos e instituições estatais – que compõem 944 relações entre si. Eles integram a chamada coalizão governante de Porto Alegre, segundo as conexões feitas pelo cientista.

Intitulado Os “donos” de Porto Alegre, o estudo evidencia pontos em comum entre políticos, financiadores de campanhas, integrantes de organizações não-governamentais e empresas responsáveis por uma fatia substancial do PIB gaúcho. As principais famílias e grupos empresariais à frente do financiamento de políticos têm nome e sobrenome, com grande poder econômico, além de prestígio e marcas conhecidas na cidade e no estado.

Um ponto central no processo é o Instituto Cultural Floresta (ICF), um think tank que tem se destacado na defesa e promoção dos interesses empresariais na cidade, inclusive assumido protagonismo nas respostas empresariais às enchentes. “Significa, apenas, que tais ações se inserem em quadro mais geral de ação estratégica da coalizão governante ao longo dos últimos anos”. A partir dessa entrada, o sociólogo mapeia as conexões do ecossistema.

Nesta entrevista ao Extra Classe, o cientista analisa como e o porquê a elite empresarial migrou do governo Marchezan para cair nos braços de Sebastião Melo. Ele também traz luz sobre como o segmento empresarial na política tende a ocultar sua centralidade sob o mantra da neutralidade, além de relaciona o elo entre corruptos e corruptores. “Essa coalizão, que se mantém no governo de Sebastião Melo, tem orientado as políticas e as legislações municipais de forma a ampliar seu poder político e seus ganhos econômicos”

Alerta ainda sobre um desafio fundamental para o campo progressista hoje. “Uma utopia para o presente não pode ser o sonho de uma volta ao passado”.

De acordo com o pesquisador, os dados obtidos mostram a centralidade de famílias vinculadas a grupos empresariais que têm grande poder econômico, visibilidade e prestígio na cidade e no estado. Seguindo a ordem do grau de centralidade calculado pelo programa Social Network Visualizerv.3.1. Há, portanto, em destaque as seguintes famílias: Gerdau Johannpeter (André Bier Gerdau Johannpeter, Jorge Gerdau Balbi Johannpeter, Richard Gerdau Johannpeter e Klaus Gerdau Johannpeter), Ling (William Ling e Wilson Ling), Goldsztein (Claudio Nudelman Goldsztein), Fração (Luiz Leonardo Abelin Fração), Vontobel (Rodrigo Vontobel), Zaffari (Bruno Zaffari) e Logemann (Eduardo Logemann)”.

O destaque de alguns indivíduos pode estar, segundo Marcelo, em parte relacionado ao ponto de entrada escolhido para a análise da rede (o Instituto Cultural Floresta), uma vez que Claudio Nudelman Goldsztein, Wilson Ling, Bruno Zaffari, Richard Gerdau Johannpeter e Rodrigo Vontobel são conselheiros do ICF e Luiz Leonardo Abelin Fração que é presidente do Instituto. No entanto, os dados coletados mostram que, independentemente de seus vínculos específicos com o ICF, eles possuem um conjunto significativo de relações com o conjunto da rede, atuando como importantes conectores e mediadores entre seus nós.

Em seu artigo, o cientista aborda as íntimas e intensas relações entre  indivíduos e empresas com um conjunto de agentes políticos que representam e defendem seus interesses e propostas no âmbito do Legislativo e do Executivo municipais. São esses agentes que têm atuado ativamente na mudança ou instituição de leis e políticas que atendam aqueles interesses e adotem aquelas propostas.

A análise identificou alguns agentes políticos centrais na rede produzida na pesquisa. Em primeiro lugar (35 vínculos), como seria esperado pela posição que ocupa, destaca-se o atual prefeito de Porto Alegre Sebastião Melo(MDB). Grande parte dos vínculos identificados se referem a recursos recebidos na campanha eleitoral de 2020, quando sua candidatura ganha o apoio de atores centrais da rede. Assim,  integrantes de famílias como Gerdau, Ling, Goldsztein, Hertz e Melnick aparecem entre os principais responsáveis pelas doações recebidas pela campanha de Sebastião Melo em 2020, segundo o site do TSE. Em 2024, Elie Horn (Cyrella), Claudio Nudelman Goldstein e Luiz Leonardo Abelin Fração (ICF) estão entre os principais doadores.

Pesquisa mostra quem são os donos de Porto Alegre

Foto: FSM/Divulgação

Marcelo Kunrath Silva, professor do departamento de Sociologia/Ufrgs, coordenador do grupo de pesquisa Associativismo, Contestação e Engajamento e vice-coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia

Foto: FSM/Divulgação

Extra Classe – O senhor se pergunta como a capital que inspirou utopias democráticas e igualitárias no passado tornou-se um polo do “liberal-conservadorismo” brasileiro. O que aconteceu?
Marcelo Kunrath Silva – Na verdade, o mundo mudou. Entre as décadas de 1990 e de 2010, tivemos mudanças radicais em termos culturais, ambientais, tecnológicos, econômicos e políticos. Só para exemplificar, esses trinta anos viram a passagem do mundo da máquina de escrever e da calculadora para o mundo do smartphone e da Internet. Ou seja, o mundo que gerou a Porto Alegre “capital da participação popular” não existe mais. E, assim, uma utopia para o presente não pode ser o sonho de uma volta ao passado. Um desafio fundamental para o campo progressista hoje é não perder os importantes ensinamentos das experiências do passado, mas construir um projeto político viável para um mundo profundamente transformado em relação a três décadas atrás.

EC – Quem são os verdadeiros “donos” de Porto Alegre hoje?
Marcelo – A expressão “donos de Porto Alegre” tem um sentido provocativo. Na verdade, uma cidade como Porto Alegre é extremamente complexa, com muitos grupos de interesse e estruturas de poder que não foram abordados pela minha pesquisa. Por exemplo, o controle de alguns territórios por grupos criminais também é fundamental para compreender as relações de poder na cidade, mas não foi objeto de análise. O foco da pesquisa é aquilo que se conceitua como a coalizão governante: a rede de agentes (pessoas, organizações, empresas, partidos, instituições) que têm acesso aos processos decisórios do governo municipal, influenciando e, no limite, controlando tais processos para o atendimento de seus interesses. No caso de Porto Alegre, especialmente desde o governo Marchezan Jr. (PSDB – 2017-2020), há uma coalizão governante formada por empresários e políticos. Essa coalizão, que se mantém no governo de Sebastião Melo (MDB – 2021-2024), tem orientado as políticas e as legislações municipais de forma a ampliar seu poder político e seus ganhos econômicos. Nesse processo, há um crescente fechamento do governo para interesses e demandas distintos daqueles defendidos pela coalizão dominante, produzindo essa imagem de uma cidade dominada por um restrito grupo econômico-político.

EC – Poder empresarial é dominante, porém, muitas vezes, oculto para o cidadão comum?
Marcelo –
Um argumento que fundamenta a perspectiva teórica da pesquisa e é sustentado pelas informações coletadas é que a coalizão governante tende a envolver outros segmentos sociais além dos partidos e políticos eleitos. E, entre esses segmentos, o empresariado tende a ter grande preponderância. Tal argumento e sua comprovação não são surpreendentes e inovadores para quem acompanha e analisa os processos políticos.

Mas parece importante para confrontar um senso comum que tende a ocultar a centralidade dos interesses e das ações dos segmentos empresariais na política. A força de tal senso comum é evidente, por exemplo, quando se fala de corrupção: em geral, há corruptos, mas não há corruptores. E muitos casos de corrupção, como aqueles identificados pela Lava Jato, envolvem relações de forte intersecção entre empresariado e políticos. No entanto, o foco das críticas e acusações tende a ficar restrito aos políticos, contribuindo para uma demonização da atividade política que é pouco salutar à democracia e impede um combate efetivo à corrupção.

EC – O artigo foi publicado em junho deste ano, ou seja, no curso da pior enchente de Porto Alegre e do RS. Como foi a investigação e qual sua principal finalidade?

Marcelo – No contexto catastrófico das enchentes surgiu a curiosidade de compreender como se estruturava e atuava uma organização empresarial (Instituto Cultural Floresta – ICF) que assumiu um certo protagonismo na difusão de conteúdos que exaltavam as ações da sociedade, especialmente as próprias, nas respostas às demandas urgentes da sociedade porto-alegrense atingida pelas inundações. Tal organização já havia sido objeto de matérias na imprensa alternativa da cidade e se destacava por reunir representantes de famílias com forte presença econômica e política em Porto Alegre.

A partir desse foco, através de uma metodologia chamada de Análise de Redes Sociais, foram sendo coletadas informações disponíveis na Internet que mostravam as relações de membros do ICF com empresários, políticos, organizações, partidos e eventos na cidade. Essa técnica de coleta de dados, denominada “Bola de Neve”, permitiu identificar uma ampla rede formada por políticos e empresários de diversos segmentos. Essa rede se estrutura a partir de diferentes tipos de relações: familiares, partidárias, financiamento de campanha, homenagens, pertencimento organizativo etc.

Algo importante que surgiu na própria análise foi a identificação de uma forte mobilização do segmento empresarial para participar e influir no chamado processo de reconstrução de Porto Alegre (e, mais amplamente, do estado) após as enchentes. Tal mobilização envolvia tanto a formulação e implementação de iniciativas do próprio empresariado, quanto a participação ativa no âmbito de iniciativas que diferentes níveis de governo (municipal, estadual e federal) estavam construindo.

EC – A maioria das 10 cidades mais afetadas pela enchente não reelegeu prefeitos. Em Porto Alegre, no entanto, o atual prefeito obteve votação expressiva no primeiro turno. Como compreender o impacto das enchentes e o poder econômico no pleito?
Marcelo – Como a pesquisa mostrou, um elemento importante da estruturação da coalizão dominante de Porto Alegre é o financiamento de campanha. Os setores empresariais que integram a coalizão contribuem financeiramente com candidaturas ao executivo e ao legislativo municipal, indicando de forma explícita suas preferências políticas. Isso foi constatado nas eleições de 2016 e 2020, abordadas pela pesquisa. E matérias de imprensa sobre o financiamento da campanha 2024 mostram a manutenção desse padrão de atuação, com um forte investimento dos mesmos setores empresariais na candidatura de Sebastião Melo e, em menor volume, de Felipe Camozzato (Novo).

É interessante notar que em 2016, quando concorreu em aliança com Juliana Brizola (PDT) e com um programa menos alinhado com os interesses empresariais, Sebastião Melo não recebeu um apoio financeiro significativo destes setores empresariais. Ao contrário, naquele momento há um apoio majoritário a Nelson Marchezan Jr., que acaba eleito. Quatro anos depois, agora com Ricardo Gomes (na época filiado ao DEM e com fortes relações com os segmentos empresariais articulados no Instituto de Estudos Empresariais – IEE e ICF) como vice, a candidatura de Sebastião Melo recebe forte apoio financeiro e político do empresariado e é eleita.

Mas, obviamente, o apoio empresarial não basta para um bom desempenho eleitoral, como mostra a candidatura de Felipe Camozzato em 2024. Há um outro processo que envolve a relação das candidaturas com redes de lideranças e organizações sociais que são capazes de produzir apoio eleitoral entre a população, particularmente os setores de renda média e baixa que constituem a maioria do eleitorado. Esse é um capital político que Sebastião Melo tem e Felipe Camozzato não tem.

EC – E as enchentes e a corrupção?
Marcelo –
As enchentes e, também, as várias denúncias de corrupção no governo de Sebastião Melo tiveram um impacto significativo no cenário eleitoral. No início de 2024, as avaliações políticas tendiam a considerar como muito provável a reeleição de Melo. Esse quadro se altera, mesmo que parcialmente, a partir de maio. E o resultado eleitoral do primeiro turno mostra essa alteração: um grande contingente do eleitorado de Porto Alegre se absteve (31,5%) ou, ainda, votou branco ou nulo (7,5%). Esse contingente é maior que a votação obtida por Melo, indicando uma expressiva insatisfação do eleitorado com sua gestão. O curioso é a incapacidade das candidaturas concorrentes, particularmente Maria do Rosário (PT) e Juliana Brizola (PDT), conseguirem conquistar parcelas desse eleitorado insatisfeito, alterando o resultado eleitoral.

EC – Ainda no dia 6 de outubro, uma colunista de economia do maior diário do estado publicou que Melo nunca perdeu o apoio do empresariado porque ofereceu diálogo nas enchentes, inclusive, muito mais do que o Marchezan na pandemia de covid. Como avalia esse tipo de recado e cenário?
Marcelo – Sebastião Melo não perde o apoio do empresariado por dois motivos. Primeiro, porque está atendendo de forma muito explícita todas as demandas desse empresariado em termos de políticas públicas e de legislação. Ou seja, Sebastião Melo representa os interesses desse empresariado e, como argumentado acima, esse empresariado é parte central da coalizão governante de Porto Alegre. Em segundo lugar, Sebastião Melo oferece aquilo que Felipe Camozzato, que seria um candidato ainda mais identificado com o empresariado, não oferece: a tendência de êxito eleitoral. Em termos pragmáticos, o apoio e o financiamento empresarial buscam um retorno positivo nas eleições e, assim, Melo é o melhor investimento no momento.

Aliás, como foi em 2020, quando a gestão de Marchezan Jr. apresentava uma avaliação muito ruim e suas possibilidades de êxito eleitoral eram baixas. O que se viu foi a migração de parcelas importantes do apoio empresarial para a candidatura de Sebastião Melo e Ricardo Gomes, que parecia mais promissora no momento.

EC – Ambos de governos de direita, Melo e Marchezan, o atual administrador se mostra mais pautável para os interesses empresariais? Por quê?
Marcelo – No caso do Marchezan Jr. há uma afinidade político-ideológica explícita e um comprometimento histórico na representação dos interesses do segmento empresarial.

EC – E o Sebastião Melo?
Marcelo – O caso do Sebastião Melo é mais complexo, pois ele tem uma trajetória política distinta na qual há vínculos históricos com organizações e lideranças populares da cidade. Não é à toa que a imagem do candidato popular, expresso na adoção do chapéu de palha como símbolo de sua candidatura e na apropriação positiva do adjetivo “chinelão” usado por opositores, encontra adesão entre uma parte do eleitorado. No entanto, apesar da continuidade da imagem de político popular, há uma mudança de posicionamento radical entre as eleições de 2016 e 2020. Sebastião Melo foi vice-prefeito na gestão de José Fortunati (PDT – 2013-2016), o qual tem suas origens políticas no PT, partido com o qual rompeu em 2002. Ou seja, era um governo que tinha um perfil de centro. Sua candidatura com Juliana Brizola em 2016 expressa a manutenção dessa aliança entre MDB-PDT. Mas esse momento é o ápice da campanha do impeachment e o eleitorado de Porto Alegre apresenta um significativo deslocamento à direita.

Após a derrota em 2016, com a continuidade do processo de fortalecimento eleitoral da direita, cuja maior expressão é a vitória de Bolsonaro em 2018 (que obtém quase 57% dos votos válidos no segundo turno em Porto Alegre), observa-se o deslocamento à direita de diversos partidos e políticos tradicionalmente identificados com o centro político-ideológico. E Sebastião Melo é um caso emblemático nesse sentido. Se há razões ideológicas nesse deslocamento à direita, além de razões eleitorais pragmáticas, é algo a ser analisado. De qualquer forma, a fidelidade de Sebastião Melo aos seus apoiadores empresariais vai muito além da adoção de um discurso que se aproxima da extrema-direita (como na sua tentativa de vinculação a Bolsonaro nas eleições de 2020).

Essa fidelidade se traduz, principalmente, na proposição de diversos projetos de lei e de políticas públicas que atendem diretamente aos interesses econômicos desses segmentos empresariais que integram a coalizão dominante.

 EC – Uma rede de 532 entidades (indivíduos, organizações sociais, empresas, partidos políticos, instituições de ensino, eventos e instituições estatais) e 944 relações entre elas é uma das constatações de seu estudo. Quem são os principais atores dessas relações e como operam?
Marcelo – A metodologia de análise de redes é potente para mapear atores e relações, mas apresenta fragilidade para produzir informações sobre como esses atores operam e como essas relações geram oportunidades.

No entanto, os dados produzidos na pesquisa permitem identificar uma rede que atua ativamente para realizar objetivos nos quais se articulam interesses econômicos e políticos. Nesse sentido, de um lado, há um forte investimento no desenvolvimento de atividades voltadas a defender e promover elementos culturais e ideológicos que dão suporte e legitimidade às posições políticas e aos negócios da coalizão dominante. Entidades como o IEE e o ICL, eventos como o Fórum da Liberdade e o South Summit, redes como o Pacto Alegre, de forma articulada e contínua, promovem valores e crenças ideológicas que fundamentam o projeto de cidade e de sociedade da coalizão governante.

De outro lado, como já colocado anteriormente, há uma atuação intensa no âmbito político. Além dos políticos do Executivo municipal, a coalizão governante envolve diversos vereadores/as, de diferentes partidos, que têm em comum um posicionamento ideológico à direita e uma fidelidade à agenda política empresarial.

EC – Como esses grupos e agentes interferem na lógica de reconstrução da cidade após a enchente?
Marcelo – Em grande medida, adaptam as formas de atuação colocadas na resposta anterior. O período das enchentes foi marcado por um forte embate ideológico, com a difusão de um discurso de incapacidade ou fracasso da ação estatal (especialmente direcionada ao governo federal, por razões óbvias) e um elogio da celeridade e eficácia da ação empresarial. O lema “o povo pelo povo” circulou amplamente naquele momento, sintetizando aquele discurso.

Para além das ações emergenciais, observa-se uma rápida mobilização empresarial para a captação de recursos e a promoção de iniciativas próprias de apoio a projetos de reconstrução. O RegeneraRS e o ReconstróiRS exemplificam essas iniciativas.

Por fim, há uma participação expressiva da coalizão governante na elaboração e execução dos projetos relacionados à reconstrução da cidade. Essa participação tende, obviamente, a reproduzir a lógica que orienta a ação política empresarial ao longo do tempo: o privilégio a leis e projetos que promovam seus interesses econômicos e políticos. Isso não significa desconhecer ou desqualificar a importância das ações de solidariedade que foram e estão sendo realizadas pelo empresariado. Tais ações, efetivamente, possibilitaram que milhares de pessoas tivessem necessidades básicas atendidas em um momento de extrema gravidade. Significa, apenas, que tais ações se inserem em quadro mais geral de ação estratégica da coalizão governante ao longo dos últimos anos.

EC – O que representa a agenda do South Summit para a atual rede de empresas e políticos de Porto Alegre na administração e rumos da cidade?
Marcelo –
Novamente, a metodologia adotada apresenta limites importantes para fornecer informações que permitam responder à pergunta de forma qualificada. O que se pode observar é que este evento tem se constituído em um referência importante para a construção e difusão de uma identidade de Porto Alegre alinhada às crenças e valores da coalizão dominante. Como coloco no texto da pesquisa, o South Summit tende a se construir como o contraponto do Fórum Social Mundial, que vinculou Porto Alegre a um horizonte utópico da esquerda mundial no início do século XXI.

EC – A participação do setor privado no financiamento de políticos e ingerência no rumo da gestão do Estado é maior hoje do que no passado ou se trata apenas de uma face mais visível agora?

Marcelo – O empresariado, particularmente em uma sociedade capitalista brutalmente desigual como a brasileira, sempre teve uma ingerência importante na gestão do Estado e na definição das políticas dos governos, independentemente de suas ideologias. Nesse sentido, o que se mostra não é nenhuma novidade. O que parece ser novo, pensando na história política de Porto Alegre desde a redemocratização, é a amplitude do domínio da agenda governamental e dos processos decisórios que esta coalizão governante tem conseguido estabelecer a partir de 2016, com o governo Marchezan Jr..

Inclusive como herança dos dezesseis anos de gestão petista (1989-2004), Porto Alegre possuía uma importante arquitetura de instituições participativas, como o Orçamento Participativo e os diversos Conselhos de Políticas Públicas. Por meio dessas instituições, outros atores e interesses sociais possuíam capacidade de se expressar e, em algumas situações, influir em processos decisórios do Executivo. A própria Câmara de Vereadores tinha uma dinâmica mais plural, que demandava maiores negociações do Executivo para a aprovação de suas propostas.

EC – O que mudou?
Marcelo – O que se observa a partir do governo Marchezan Jr. é um ataque às instituições participativas da cidade e a adoção de um privilegiamento explícito aos interesses empresariais e políticos que vão conformar a coalizão governante na sua gestão. Em uma famosa manifestação em um evento empresarial no início do seu mandato, o então prefeito Nelson Marchezan Jr. não deixou dúvida sobre quais seriam os atores e interesses que orientariam seu governo: “Não será ninguém mais do que a elite da comunicação, a elite empresarial e a elite política que farão as reformas tão necessárias. Delegar isso ao ‘seu João’ e à ‘Dona Maria’ é irresponsabilidade”.

O domínio dessa coalizão governante se aprofunda ao longo do governo de Sebastião Melo e se traduz em uma tendência de fechamento do governo a qualquer outro ator ou interesse que não se alinhe com aqueles defendidos pela coalizão governante.

 

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