POLÍTICA

Lula 3, rearticulação política e necessária volta às ruas

O pesquisador Moysés Pinto Neto avalia que Lula, em seu terceiro mandato, ainda não encontrou equilíbrio entre a entrega de resultados positivos e a aprovação popular
Por Elstor Hanzen / Publicado em 31 de janeiro de 2025

Lula 3, rearticulação política e necessária volta às ruas

Fotos: Wilson dias (Ag Brasil)/Memorial da Democracia/Ricardo Stuckert

Fotos: Wilson dias (Ag Brasil)/Memorial da Democracia/Ricardo Stuckert

Doutor em Filosofia, professor e pesquisador Moysés Pinto Neto analisa as expectativas, as realizações e a percepção de Lula 3 nos seus primeiros dois anos à frente da condução do Brasil. Segundo ele, o atual governo federal obteve resultados positivos, principalmente nas áreas econômica e social. Queda de desemprego, redução de pobreza, aumento da escolarização, redução da informalidade, balança comercial favorável e inclusive números fiscais dentro ou muito próximos da meta estão entre as realizações.

Além disso, avançou com o Bolsa Família, implementou o “Pé de meia” e reforça a noção de que o Brasil tem um mercado interno com mais potencial. “Essa transferência direta de renda sustenta Lula de modo muito sólido, apesar de toda pressão contrária, uma vez que está na memória do povo, é validada pela experiência”.

Contudo, em meio às transformações na última década, com forte politização da direita, toda essa concretude não é suficiente. Claro, necessita garantir e intensificar o programa de governo, mas também precisa produzir ideias capazes de mobilizar e criar subjetividade.

Essa rearticulação teria que vir de duas frentes. De um lado, partidos de esquerda e movimentos sociais teriam que se entender para promover uma reviravolta de ocupação das ruas, tornando a esquerda mais visível e combativa. “Não existe equilíbrio na balança se você não coloca peso do seu lado. Hoje, nosso lado está muito burocratizado ou preocupado com redes sociais. Houve alguns momentos positivos, como a campanha “Criança Não é Mãe”, mas foi praticamente um episódio isolado” considera.

Claro, há também os intoxicados pela lógica do algoritmo, trabalhando como nunca, exaustos e competitivos, constata. “Sair às ruas hoje não é a mesma coisa que 2013. Mesmo assim, não vejo outro caminho. E pior: os bolsonaristas, mesmo em menor número, ainda saem. Nós temos muito mais razões para sair. A questão é: como engajar as pessoas para que haja protestos contra o Orçamento Secreto, por exemplo? Se nem o fim do mundo as comove mais, como ocorreu com Porto Alegre que viveu, em meia década, enchente e pandemia, e segue tudo igual, já não sei se não vale a frase do Kafka: Há esperança, mas não para nós”.

Desafios econômicos e sociais

Lula 3, rearticulação política e necessária volta às ruas

Foto Rodrigo W. Blum/Divulgação

Moyses Pinto Neto, pesquisador

Foto Rodrigo W. Blum/Divulgação

Há uma clara prioridade dessas agendas no governo Lula, salienta. No entanto, ainda não há um consenso sobre exatamente em que elas deveriam consistir. O fato de boa parte da esquerda, inclusive o PT e setores do governo, ter ideias mais próximas do desenvolvimentismo, faz com que a economia sempre esteja sob tensão em torno do que efetivamente se deseja. Por que, no fim das contas, os objetivos estão sendo cumpridos em relação a qual modelo?

“Hoje, o poder parece estar mais próximo do lado de Haddad, que poderíamos denominar como social-liberal, algo menos rompedor do neoliberalismo, mais alinhado ao discurso ortodoxo. Haddad, no entanto, tem ideias para além do establishment: nas suas ações, promoveu a reforma tributária – longe da ideal, sem dúvida, mas ainda assim importante – e tem colocado na pauta tributação dos ricos e, junto ou em função da pressão do Lula, os conflitos distributivos no Orçamento. É pouco, mas é muito, ainda mais na posição em que ele está”, avalia Moysés Pinto Neto.

Sob o prisma social, o governo faz o que prometeu, e isso o mantém de pé, afirma. Avançou com o bolsa-família, reativou programas anteriores abandonados, acolheu a ideia do “pé-de-meia” e reforça a noção de que o Brasil tem um mercado interno com mais potencial que os ideólogos de mercado propõem, arrochando a renda dos pobres e inibindo o crescimento econômico, cinta o professor. “Essa transferência direta de renda sustenta Lula de modo muito sólido, apesar de toda pressão contrária, uma vez que está na memória do povo, é validada pela experiência”.

Reconstrução do país

Essa meta foi satisfatória, salienta o pesquisador. “Mas também sem dúvida não apenas por erros do governo. Há muito a ser feito e a conjuntura parece cada vez pior. A organização política, desde 2013, não foi reconstruída, os partidos de esquerda parecem incapazes de promover atos substantivos e as ruas oscilam entre a desocupação e a ocupação pelos fascistas”.

“Se o governo está em ampla minoria em termos da política institucional, no Congresso, e em relação aos canais mais fortes de pressão – como mídia, agro, Forças Armadas, Faria Lima – como não poderia ser diferente para um governo de esquerda (embora não seja um governo de esquerda), somente uma forte pressão vinda diretamente da sociedade civil poderia produzir mais legitimidade política, como mostrou o próprio Bolsonaro, quando sua popularidade despencava na pandemia, sempre reaquecendo seu movimento, e mantendo-se com isso vivo”, analisa o especialista.

Além disso, para Neto, “o governo Lula confia demais na institucionalidade e convida as lideranças sociais para integrá-la, enfraquecendo um campo autônomo que poderia servir como válvula de pressão social. O resultado disso nós já vimos”.

Caso do Pix

Lula 3, rearticulação política e necessária volta às ruas

Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

Quando foi a última vez que alguém viu Haddad conversando com o que, no jargão jornalístico, poderia ser chamado de “populares”?, questiona Moysés Pinto Neto

Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

O caso do Pix tem mostrado cada vez mais um limite para as posturas de Haddad. Para Neto, o ministro, ao tentar agradar a todos, tem produzido um descontentamento geral. “Isso se deve à postura ambígua, chamada por alguns de “o mais tucano dos petistas”, que acaba dificultando sua circulação. Não temos espaço para outro presidente-príncipe como FHC, de baixa capilaridade social e alta densidade intelectual, embora certamente muitos assim desejem”.

Quando foi a última vez que alguém viu Haddad conversando com o que, no jargão jornalístico, poderia ser chamado de “populares”?, questiona Moysés Pinto Neto. “Sua antidemagogia torna-se tecnocrática e tem o problema de não agradar ninguém: a esquerda, porque o programa é de centro-direita; a direita, porque o governo é de centro-esquerda. Você mina sua base, pela contradição, mas não recebe o bônus da confiança do adversário. Perde dos dois lados”, analisa.

Sem apoio, Haddad tenta emparelhar as contas – tornando-se vulnerável a ataques como de Nikolas Ferreira, que não foi apenas uma notícia falsa de taxação, mas um voto de desconfiança, afirma o pesquisador. Para ele, “como, no Brasil, estão todos mais informais, mesmo que sempre fossem em alguma medida, a racionalização e a burocracia do Estado não necessariamente irão conquistar os corações, ainda mais porque os serviços públicos estão em baixa. O medo de que haja um aumento da arrecadação por baixo, incluindo quem não declarava, mas está na base da pirâmide, tem base objetiva – a fragilidade política de um governo em relação ao seu programa redistributivo”, avalia.

Oposição e redes

Já a extrema-direita parece ter batido no teto em relação à mobilização social. “Mas o preocupante é que vem se segurando por ali. O principal mecanismo de produção de subjetividade de extrema-direita são as plataformas digitais. A lógica do algoritmo hoje é uma ferramenta que, sozinha, controla mais que qualquer outra formação social”, ressalta Moysés Pinto Neto.

Ele destaca também que os brasileiros são um povo extremamente conectado, hoje com a vida completamente entrelaçada nas redes. “E sabemos que elas favorecem a extrema-direita, não apenas por alianças explícitas – como Musk e Zuckerberg com Trump, agora –, mas pela sua própria estrutura, que envolve a economia da atenção, a captura de dados e a circulação de conteúdo maximizada pela audiência sem preocupação com sua consistência”.

Muitos filósofos e psicanalistas do século 20 analisaram as massas a partir do influxo dos novos meios de comunicação, lembra. “Hoje, elas migraram para as plataformas e funcionam por segmentação. A extrema-direita já capturou quem são seus segmentos e está em ação. O caso do Pablo Marçal é o exemplo mais escrachado disso”.

Em meio a tantas transformações nos últimos 10 anos, houve uma forte politização da direita. Hoje, por exemplo, não bastam apenas resultados. “É preciso entregar ideias – mas não quaisquer ideias, as ideias deles. Não basta o governo Lula apresentar resultados de crescimento, queda de desemprego, redução de pobreza, aumento da escolarização, queda da informalidade, balança comercial favorável e, inclusive, números fiscais dentro ou muito próximos da meta. Claro, é preciso que o programa não seja interrompido. Ou seja, esses operadores não estão mais dispostos a negociar, como fizeram no período 2002-2014”, aponta.

De outro lado, a radicalização é ainda maior entre setores do agronegócio, por exemplo, cujo programa envolve a desregulação e a liberalização, inclusive em relação a questões ambientais. “Esses segmentos funcionam por irradiação, construíram um ecossistema social para suas ideias que hoje controla vários estados do país: no Sul, Centro-Oeste e no Norte, sobretudo. Isso torna a movimentação da oposição muito agressiva e tensiona o governo todo tempo, tornando-o fraco”, explica Moysés Pinto Neto.

Outros dois mandatos e futuro

Não há como comparar, segundo Neto, porque são cenários completamente distintos. “Governar no século XXI tornou-se uma atividade muito difícil. Lula vem tentando manter a fórmula dos governos anteriores, talvez esse seja justamente o erro. Não há mais equilíbrio possível. Mas, tampouco, tenho a resposta de como será possível sair desse imbróglio”, comenta.

Para ele, agora a prioridade deveria ser a rearticulação política. “A divisão do governo em frações incongruentes já se mostrou improdutiva. O governo não vai entregar nada de muito interessante, porque o ambiente é altamente defensivo. É como uma final em que você joga contra um time mais forte lutando para vencer por um a zero. Há uma confluência brutal de forças de extrema direita, e de uma direita que insiste em minimizar a existência desta, na sociedade brasileiros”.

“O combo Boi-Bala-Bíblia hoje controla o país. Assim, só uma rearticulação política possibilitaria caminhar um pouco além – ou, muito provavelmente, o que vai ocorrer é que talvez sejamos salvos pela memória e pelo carisma de Lula, nas próximas eleições, mas em seguida vivamos um ciclo infernal em que a esquerda será a terceira força nacional – depois da extrema-direita e do Picaretão (Centrão)”, projeta o analista.

Diversidade

Moysés Pinto Neto lembra que governo Lula subiu à rampa com chaves cosmopolíticas em 2023: um cacique, uma mulher, um animal, um trabalhador nordestino imigrante, uma pessoa com deficiência, um menino negro. “Algum esquerdista da velha guarda dirá: “veja só, o identitarismo!”, mas não é nada disso. Vivemos o colapso do nosso modo de produção no planeta Terra, e não é só o capitalismo que está em jogo, é o próprio postulado moderno de que a Terra é uma fonte de recursos que serve para abastecer o almoxarifado da empresa humana”.

Quais são as lógicas que se contrapõem a isso? “Quando Lula se aproxima dos povos originários, com o Cacique Raoni e a ministra Sonia Guajajara, quando chama Anielle Franco, Marina Silva e Silvio Almeida para os ministérios, a gente tem um flerte com outros futuros – outras paisagens que não seja o fazendão greco-goiano e seus habitantes cafonas, parvos, perversos”.

“Enfim, que triste, não? Haveremos de encontrar outros modos de conviver fora do Estado ou seremos engolidos, provavelmente, pelas máfias brasileiras que são o espelho interno das mundiais, e nem planeta mais haverá para a gente e nossos filhos”, conclui.    

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