POLÍTICA

Vereador gaúcho exalta livro de torturador no dia da comemoração do prêmio de Fernanda Torres

O parlamentar gaúcho Marcelo Ustra Soares (PL), de Porto Alegre, pode ter incorrido em crime de incitação à violência política, afirma ex-presidente da Comissão da Verdade da Alesp
Por Marcelo Menna Barreto / Publicado em 7 de janeiro de 2025

Vereador gaúcho exalta livro de torturador no dia da comemoração do prêmio de Fernanda Torres

Foto: reprodução / redes sociais

Foto: reprodução / redes sociais

Vereador Marcelo Ustra Soares (PL), de Porto Alegre, exalta seu parente torturador no dia em que Brasil comemora Globo de Ouro de Melhor Atriz de Drama para Fernanda Torres. Primeira brasileira a receber um dos maiores prêmios do cinema mundial, por interpretar a viúva de Rubens Paiva, Eunice Paiva, morto por agentes da ditadura militar na década de 1970. A caso ocorreu na retomada do ano parlamentar da Câmara de Vereadores de Porto Alegre.

O fato ocorreu no último dia 6, quando Soares que é primo do coronel do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra levou debaixo do braço um exemplar do livro A verdade sufocada, do seu parente e o ostentou na Câmara.

Na obra, Brilhante Ustra que foi condenado em três instâncias por torturar presos políticos, dá sua versão particular do regime militar e dos crimes praticados por agentes do estado contra opositores. Também militar, o vereador Soares que foi eleito com 2.669 votos prometeu deixar o livro na sua mesa no plenário. Ustra morreu em 2015, sem punição.

“No dia que Fernanda Torres recebe o Globo de Ouro por um filme que condena a ditadura, a extrema direita mostra sua natureza contra a verdade e justiça: faz circular na Câmara o livro do torturador Brilhante Ustra”, escreveu o vereador da oposição, Roberto Robaina (PSOL)  em suas redes sociais uma foto da mesa de Ustra com o livro.

Rubens Paiva foi o único ex-parlamentar desaparecido político na história do Brasil. Ele foi morto sob tortura, reconhecida pelo estado brasileiro, após longa batalha judicial de sua viúva retratada no filme Ainda estou aqui, de Walter Salles. O filme, além de ter garantido o Globo de Ouro para Fernanda Torres, já recebeu  o prêmio de melhor roteiro no Festival de Veneza e deve concorrer ao Oscar de filme estrangeiro.

O dia em que Bolsonaro cuspiu no busto de Rubens Paiva, em 2014

Morto aos 85 anos, Brilhante Ustra chegou a ver sua sentença ser promulgada em caráter definitivo pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) em 2014. Ele coordenou centros de tortura durante a ditadura militar.

Considerado como uma provocação por defensores da democracia e dos direitos humanos, a exaltação à Brilhante Ustra virou moda desde que o então deputado federal Jair Bolsonaro – ao declarar seu voto pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff – fez uma homenagem ao único da lista de 377 nomes de agentes do Estado listados como torturadores pela Comissão Nacional da Verdade que acabou recebendo uma condenação judicial.

Para muitos, o Brasil chegou a um clima de violência política e intolerância por não ter havido sanções pelo ato de Bolsonaro que, em 2014, desceu do seu gabinete para cuspir no busto de Rubens Paiva no momento de sua inauguração na Câmara dos Deputados. A hostilidade foi feita em frente a família do desaparecido político. Na ocasião, o deputado que mais tarde chegaria à Presidência da República bradou que Paiva teria feito por merecer (sua morte e desaparecimento)  e que era um vagabundo.

Outros tempos

Em abril passado, o Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, em Minas Gerais, reconheceu por unanimidade a demissão por justa causa de um empregado que usou, no seu local de trabalho, durante o serviço, uma camisa com a imagem de Brilhante Ustra, com o termo “USTRA VIVE”. O fato ocorreu no mês de dezembro de 2022, em um hospital localizado na capital mineira.

Segundo a decisão, o trabalhador praticou apologia à tortura e à figura de torturador, o que configurou falta grave o suficiente para inviabilizar a continuidade da relação de emprego. Assim, o TRT autorizou a dispensa por justa causa.

Crime de Incentivo à violência política

Adriano Diogo, ex-deputado estadual de São Paulo, presidiu por 10 anos a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa paulista. Ele foi o responsável pela primeira Comissão da Verdade instalada no país, um ano antes da nacional.

Com a autoridade de quem convocou o Coronel Brilhante Ustra a depor ao parlamento sobre sua atuação no Destacamento de Operações de Informação — Centro de Operação de Defesa Interna (Doi-Codi) de São Paulo, Diogo é categórico para o Extra Classe sobre o ocorrido em Porto Alegre: “a atitude deveria ser considerada crime”.

“Crime de incentivo a violência de Estado. O parlamentar tinha que ser enquadrado no mesmo capítulo que os manifestantes que atacaram as sedes da Praça dos Três Poderes, no dia 8 de janeiro de 2023. Essas pessoas fazem apologia. O cara que quer divulgar a obra do Ustra propõe o assassinato coletivo do povo brasileiro. Ele tinha que ser enquadrado como terrorista”, fala Diogo indignado.

Há, além de ideia de “lacração”, cinismo na atitude do vereador, analisa o militante dos direitos humanos. “O cara levar o livro do Ustra na semana do Globo de Ouro é exatamente para dizer ‘ainda bem que o Rubens Paiva foi morto. Estou muito feliz que o Rubens Paiva tenha sido morto’”, entende.

Sobre Bolsonaro, o ex-deputado paulista também não poupa sua opinião. “Como seguidor do Ustra, ele  foi o maior discípulo, ao deixar morrer 700 mil pessoas durante a pandemia. São crimes continuados, não?”, destaca.

Legislação e falta de enquadramento

Já o coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Liberdade de Expressão no Brasil (Pleb) e professor do Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUCRio), o jurista Fábio Leite vê no fato um assunto polêmico e controvertido.

Para ele, sem dúvida, houve uma provocação, “mas a gente não tem uma legislação anti-lacração”, no Brasil, observa.

“É claro que o que torna a questão controversa é a gente pensar em outras situações, o que se pode e o que não se pode fazer mencionando o Brilhante Ustra, esse torturador, esse monstro, reconhecido e condenado pelo Estado”, pontua Leite.

O jurista diz que o livro não está proibido, nem retirado de circulação e lamenta não existir no Brasil uma lei específica como a recentemente criada na Espanha que penaliza enaltecimento ao terrorismo, onde a ação do vereador poderia ser enquadrada.

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