Todos os anos ocorrem cerca de 60 mil mortes, por causas diversas, no Rio Grande do Sul. Desse total, 600 pessoas sofrem morte encefálica e, por isso, tornam-se doadores em potencial de órgãos para transplantes. A ausência de um neurocirurgião e de outros profissionais médicos, e a omissão ou falta de estrutura em alguns hospitais, reduzem as notificações de morte encefálica (condição estabelecida na Lei dos Transplantes para a retirada de órgãos do doador) a menos de 300, ou seja, 0,5% do total de óbitos se efetivam como doadores. Por falta de informações, motivação religiosa ou descrença na morte encefálica, um terço das famílias não autorizam o procedimento. De janeiro a dezembro de 2006, das 325 notificações de morte cerebral feitas à Central de Transplantes, 130 se converteram em doadores. Apesar disso, o total de transplantes vem aumentando ano a ano no estado: 1.094 em 2004, 1.176 em 2005, 1.344 em 2006 e 721 no primeiro semestre deste ano. Embora lentamente, as pessoas estão se conscientizando de que autorizar a doação de órgãos é doar vida.
A negativa das famílias em 28,2% dos casos, seguida de parada cardíaca do doador (o que inviabiliza o transplante) em 18,4%, e ainda a contra-indicação médica em 12,2% são outros fatores que barram uma disseminação maior da cultura da doação de orgãos. A coordenadora da Central de Transplantes, Heloísa Prrenoud Foernges, destaca que estão sendo adotadas estratégias para que mais vidas sejam salvas por transplantes: implantar coordenações intra-hospitalares de doação de órgãos e tecidos nos hospitais com mais de 80 leitos, incluir o tema no currículo dos cursos de Medicina e Enfermagem, conscientizar as comunidades para a importância da segurança e confiança no processo de doação, além de capacitar profissionais para a docência e qualificação de coordenadores intrahospitalares. Na primeira quinzena de agosto, 2.632 pacientes ativos (em condições clínicas de realizar o transplante) aguardavam na fila de espera. Destes, 1.520 esperam por transplante de rim, 765 de córneas, 210 de fígado, 70 de pâncreas, 48 de pulmão e 19 de coração.
“Atribuímos o baixo número de doadores a uma falha no ato médico da notificação da morte encefálica”, diz Francisco Neto de Assis, presidente da Aliança Brasileira pela Doação de Órgãos e Tecidos (Adote), de Pelotas. A negativa das famílias também preocupa. “É um processo difícil de ser mudado no curto prazo. Requer medidas educativas, uma mudança de cultura e de atitude”, aponta. Em Caxias do Sul, a Rimviver, que atua desde 1993, mantém mais de cem pacientes renais. De acordo com a presidente da Ong, Isoldi Chies, no estado são 1,5 mil pessoas à espera de doação de rins. O trabalho de conscientização consiste em palestras semanais nas escolas, com depoimentos de transplantados e de pacientes renais. O caminhoneiro Edson Kich, 38 anos, aguarda por um transplante de rim desde 2003, quando passou a fazer três sessões de hemodiálise por semana. “A espera é um misto de ansiedade e resignação, pois ao mesmo tempo em que sei que preciso do transplante para viver, também sei que a doação depende da morte de outra pessoa. Seria egoísmo ter pressa”, diz Kich.
Reciprocidade necessária
O nefrologista Valter Duro Garcia, coordenador de transplantes da Santa Casa, diz que os maiores entraves são a falta de doadores e a desinformação das famílias. “Não se pode pensar só em doação, mas na reciprocidade. E se eu tiver um familiar que precisa fazer um transplante? Para que alguém doe, eu também preciso ser doador”, ressalta. Desde 1977, foram realizados mais de 4,8 mil transplantes na Santa Casa, sendo 2,2 mil de rins e 1,5 mil de córneas. A média é de 16,5 por mês. De janeiro a junho deste ano foram 198 procedimentos. Para Roberto Corrêa Chem, chefe do serviço de cirurgia plástica e coordenador do Banco de Tecidos Humanos – Pele, do Complexo Hospitalar Santa Casa, a disseminação da cultura da doação de órgãos passa pelo acesso à informação. “Se informada corretamente, a população reage muito bem, as famílias se dão conta da importância da doação de órgãos e do seu potencial para salvar vidas”, aponta. Criado em 2004 junto ao hospital Dom Vicente Scherer, o Banco de Tecidos registrou um crescimento no número de enxertos de pele, de 90 para 334 pacientes, em apenas dois anos. Os transplantes intervivos e autotransplantes beneficiam vítimas de queimaduras. Com a publicação, em março deste ano, da portaria 101 do Ministério da Saúde, que regulamenta a utilização de tecidos de pacientes mortos, a expectativa é de um aumento significativo nos transplantes de pele. “Os hospitais estão se equipando e é importante que a população saiba que a pele também pode ser doada. Vai demorar até se criar uma rotina, mas não tenho dúvidas de que haverá um incremento no transplante de pele”, prevê Chem. Além de campanhas de conscientização para estimular a doação de tecidos, o Banco de Pele conta com novos equipamentos doados pela Refinaria Alberto Pasqualini com intermediação do Conselho de Cidadania da Fiergs.
Oferta será revitalizada para cardíacos e leucêmicos
Outra iniciativa são os bancos públicos de sangue de cordão umbilical, que fornecem células-tronco no tratamento de pacientes cardíacos e portadores de leucemia. No início de julho, a presidente da Fundação Estadual de Produção e Pesquisa em Saúde (Fepps), Sílvia Spalding, anunciou que o estado terá R$ 3 milhões para implantar um dos dez bancos que serão criados pelo Ministério da Saúde. A chefe do Laboratório de Hematologia e Células-Tronco da Faculdade de Farmácia da Ufrgs, Patrícia Pranke, diz que o banco vai aumentar a oferta de célulastronco e revitalizar os transplantes de medula. Dos 20 mil casos de leucemia registrados por ano no país, metade requer transplante de células-tronco. Como faltam doadores, são realizados apenas em torno de mil transplantes por ano. “As vantagens de se retirar células-tronco do sangue do cordão umbilical começam pela baixíssima rejeição, o que multiplica as chances de compatibilidade e de êxito dos transplantes”. As chances de compatibilidade são de uma para cada 4 mil amostras, enquanto são necessárias 20 mil amostras de medula para que se localize uma compatível.
Transplantados fazem campanha
“A oferta de órgãos cresceu. Há uma conscientização maior por parte da sociedade, pois a cultura da doação de órgãos vem sendo disseminada pelos meios de comunicação, palestras e campanhas de conscientização. Mas 83% dos pacientes da lista de espera morrem nos primeiros seis meses, o que diz muito sobre a gravidade que representa a falta de doadores”, alerta o cardiologista Ivo Nesralla, chefe da equipe de cirurgia cardíaca e presidente do Instituto de Cardiologia (IC) do RS. A carência é de 15 a 20 doadores por ano para cada milhão de habitantes. Nesralla realizou, em 1984, o primeiro transplante de coração da América Latina com o emprego da droga imunossupressora Cyclosporina A. Nesses 23 anos, foram feitos 172 transplantes no IC. O 12° paciente, o professor de Educação Física da UFSM, João Carlos Cechella, 53 anos, operado no IC em maio de 1989, considera-se “a prova viva dos resultados positivos de um transplante”. Foi durante uma de suas palestras sobre a importância da doação de órgãos que Cechella conheceu a família do doador. Embora vetado pela Lei dos Transplantes, o encontro foi inevitável. “Aconteceu ao natural”, diz ele. Em julho deste ano, João entrou na igreja conduzindo a noiva Lilian Rodrigues, filha de José Rodrigues, doador do coração que ele carrega no peito até hoje. A pedagoga Cláudia Cardoso, 43 anos, coordenadora do comitê gaúcho do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), submetida a um transplante hepático em 1996, no hospital São Francisco, destaca a confiança na equipe médica e a gratidão à família do doador. “Alguém que, num momento de extrema dor, consegue superá-la e pensar no próximo”, define. Para Cláudia, a pessoa só é doadora quando existe morte encefálica. Por isso, a família deve ser avisada de sua vontade. “Essa é uma informação importantíssima para desmistificar quaisquer dúvidas do ponto de vista ético e moral. A pessoa que assume ser doadora está motivada pelo espírito solidário, pela confiança nos procedimentos e dá valor à vida”.
Mais de 40 mil esperam por doação
De acordo com o coordenador do Sistema Nacional de Transplantes, órgão do Ministério da Saúde, Roberto Schlindwein, há 41.749 brasileiros na fila de espera para transplante, sendo que a maioria, 34.077, são pacientes renais, além de 26.793 para transplante de tecidos (córneas). Os dados são de julho de 2007. No ano passado ocorreram no país 5.363 notificações de potenciais doadores em morte encefálica, com efetivação de 1.113 doações multiorgânicas. Apesar do reduzido número de doadores em relação à lista de espera, ele avalia que a população brasileira é solidária e favorável à doação. “As campanhas têm obtido resultado. Entretanto, a melhor forma de sensibilizar a população quanto à doação de órgãos é oferecer a garantia de que o transplante é um tipo de tratamento que está disponível e acessível a todo o cidadão, independente de classe social ou poder econômico. Todo e qualquer tipo de transplante pode ser realizado pelo SUS”, diz Schlindwein.