Foto: Damião A. Francisco/ Café Filosófico/ Divulgação
A falta de tempo, a necessidade de respostas imediatas a estímulos e a ideia de que é preciso estar sempre feliz podem estar na origem da depressão. O alerta é da psicanalista Maria Rita Kehl, autora do livro O tempo e o cão (Ed. Boitempo, 2009). Doutora em Psicanálise pela PUC de São Paulo, Maria Rita, 57 anos, atende em seu consultório há 25 e, nos últimos seis anos passou a admitir pacientes que se declaram deprimidos. A experiência levou à constatação de que existe uma relação entre o modo de vida contemporâneo e a depressão. “As causas sociais e individuais estão combinadas para produzir esse sentimento”, explica. Conferencista, ensaísta e poeta, Maria Rita também é autora dos livros A mínima diferença – o masculino e o feminino na cultura; Processos primários, Deslocamentos do feminino – a mulher freudiana na passagem para a modernidade; Função fraterna; Sobre ética e psicanálise, entre outros e, desde 1974, escreve para jornais e revistas nacionais. No dia 26 de outubro, a psicanalista apresentou em Porto Alegre a conferência Depressão: a face contemporânea do mal-estar na civilização, na programação do ciclo de debates Fronteiras Braskem do Pensamento. Momentos antes da palestra, concedeu entrevista coletiva e falou ao Extra Classe.
Extra Classe – Por que a vida moderna produz esse aumento das depressões?
Maria Rita Kehl – Vivemos numa época em que as pessoas se deparam com muitas opções para construir a própria vida, um tempo de muitos estímulos individuais e de muito mais liberdade se comparado com o de nossos pais e avôs. É uma época de muito convite à alegria, à festa, ao consumo, ao desfrute da vida. Por isso, é paradoxal que essa nossa vida produza um aumento das depressões. A aceleração da nossa experiência do tempo produz um esvaziamento da vida psíquica. Quanto mais aceleradamente se vive, menos consistência psíquica tem aquilo que é vivido. Há certo vazio do qual as pessoas sofrem e isso não significa necessariamente que as pessoas são deprimidas. Aquelas que não são deprimidas no sentido clínico também se queixam desse vazio, de falta de vontade de viver, de que a vida não vale a pena. Um sentimento que corresponde à vivência reduzida na experiência permanente de você responder a estímulos, sem tempo de desenvolver outras atividades psíquicas.
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EC – É possível desacelerar?
Maria Rita – A aceleração não depende das pessoas quererem ou não, ela está no ritmo contemporâneo do capitalismo. Todo mundo tem esse sonho: ‘ah, um dia vou morar num lugar melhor, um dia vou trabalhar menos, um dia eu vou…’ Esse dia eu não sei se virá pra maioria de nós. Porque vivemos numa sociedade que nos pede aceleração. Se fosse possível se libertar individualmente, as pessoas já teriam feito isso. Essa é uma expectativa. É engraçado que quanto mais capital se acumula, mais a vida humana cai de qualidade. É algo que a sociedade vai ter que mudar. E não vai mudar para ser legal com a gente. Vai mudar porque vai chegar no limite.
EC – Além da temporalidade, a senhora tem abordado a depressão sob o ponto de vista social. Que outros fatores da vida contemporânea, além da corrida contra o tempo, podem levar à depressão?
Maria Rita – Do ponto de vista do sintoma social, em linhas bem gerais, a depressão é produzida na cultura contemporânea por um convite permanente para que você desista do desejo em nome de formas de prazer mais imediatas. O desejo é um caminho incerto que o sujeito tem que construir sozinho e que ele nunca vai realizar plenamente. E a sociedade de mercado nos convida a abrir mão do desejo em nome de uma vida de pequenos prazeres e satisfação imediata.
EC – Podemos afirmar que, em uma sociedade muito livre, a imposição não é moral, mas de imagem?
Maria Rita – Vivemos respondendo a estímulos, ao que esperam de nós, o que provoca a perda de tudo aquilo que é singular, pois você começa a querer corresponder a padrões. É paradoxal, porque nós vivemos numa sociedade muito livre. Não há imposição de forças sobre as pessoas. Nenhuma imposição rigidamente moral como numa sociedade muito religiosa ou militarizada. Mas há a imposição de imagem e a tentativa de responder permanentemente a essa imposição é vivida como imperativo. Talvez o depressivo sofra o pior tipo de culpa, citando Freud, que é a culpa por não conseguir obedecer a uma moral que aparentemente lhe é favorável. É diferente da culpa por não responder a uma moral que contraria todos os princípios e impulsos da pessoa por ser repressiva por negar a sexualidade, por não permitir o prazer. Hoje, a moral vai a favor. Você tem que se satisfazer, tem que ter tudo de bom, tudo pra você agora, sexo, objetos e lazer. E, ao mesmo tempo, subliminarmente, todo esse tempo é atravessado de alguma forma pelo tipo de ritmo do tempo de trabalho.
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EC – A sua experiênncia clínica com adultos que são pais ou convivem com crianças e adolescentes, assim como a própria literatura psi, mostram que o aumento da depressão atinge também os jovens. Por quê?
Maria Rita – O que deprime adolescentes e jovens, primeiro é o temor da violência que está embutida num convite que a cultura contemporânea faz o tempo todo para que ele goze. Isso eu vejo na clínica ao escutar os pais. O adolescente que está recém saindo da infância quer corresponder a esse convite, ir para a balada, para a rave, se mostrar, mas ele teme, porque isso é muito pesado para alguém que está saindo da infância, que ainda não é adulto, assim como é pesada a rivalidade entre os jovens no campo que a gente chama de fálico, da sexualidade. Os mais sensíveis, os que se sentem mais infantis, começam a recuar um pouco. Aí tem um processo que se alimenta dele mesmo, porque esse que demora a entrar na onda começa a se sentir por baixo.
EC – E se transforma em vítima potencial do bullying…
Maria Rita – A rivalidade hoje nas escolas é muito pesada. Essa prática de bullying, de isolar o mais tímido. O adolescente começa a se sentir muito mal, muito porcaria ele mesmo, muito pouca coisa. Não porque ele não tenha sonhos, objetivos ou ideais, mas porque ele não corresponde ao tanto de diversão, de sedução, de sexualidade que dele é esperado. São esses que se deprimem. A adolescência é um período crítico porque está entre a infância e a juventude, mas não é uma condição natural. É uma invenção das condições de mercado de trabalho. Algumas sociedades, a nossa própria, há 30 anos, tinha certo respeito pela crise. A crise era vista como um momento de amadurecimento, de reflexão, em que os adolescentes conversavam muito sobre a fossa, se juntavam, trocavam experiências. Hoje até criaram esse grupo emos, um subgrupo social que resolveu valorizar de novo a fragilidade, e eles se amparam. Fora desses pequenos grupos, o adolescente em crise hoje fica completamente desprestigiado. De fato, no mundo contemporâneo não há um grande ideal, nem sei se é possível haver. Mas eu vejo pessoas jovens engajadas em muitas formas de lutas pontuais, como a luta ambiental, o MST. O movimento pela reforma agrária tem atraído jovens universitários que não são sem-terra, mas que se interessam, que querem dar aula, fazer oficina. Tem médicos, advogados, agrônomos, pedagogos, gente de nível universitário que resolve se juntar ao movimento. Eu vejo muitos jovens interessados.
EC – Qual a diferença entre os pacientes do seu consultório e aqueles que a senhora analisa na Escola Florestan Fernandes, do MST?
Maria Rita – Em parte tem uma diferença de encontrar no movimento pessoas que estão menos condicionadas ao que é a psicanálise. A maioria é, digamos, virgem de análise. Para quem nunca pensou no assunto mobiliza muito perceber que o inconsciente existe, que ele produz efeitos, que o sonho tem um valor de verdade, que as convicções da pessoa são importantes na vida, a infância e tudo o mais que normalmente a gente não dá bola. Outra diferença muito grande desse movimento social, que atualmente deve ser o maior do mundo, é que as pessoas não são tão fanáticas como eu imaginava. Claro que eles lutam pela reforma agrária, mas cada um está pelo seu caminho, há muitas divergências, não é um movimento dogmático. De certa forma, as pessoas ali não sofrem muito de uma vida sem sentido. O movimento dá muito sentido à vida e dá também muito amparo. São pessoas que sentem que podem contar com o outro, coisa muito rara no mundo contemporâneo.
EC – Lembrando que os professores também são vulneráveis à depressão devido ao excesso de trabalho, à falta de tempo, à pressão e ao assédio, de que forma eles podem interferir nesse processo de falta de ideais, de insegurança e desinteresse enfrentado pelos jovens?
Maria Rita – É claro que o desprestigio em termos de salário, agravado pela correria, pela quantidade de aulas, já é suficiente para deixar o professor muito desencantado. Já não faz mais aquilo com gosto, com preparo. Mas ele faz. Sai daqui, corre pra lá e acumula tanto trabalho e responsabilidades para conseguir ganhar mal. Isso é mais triste ainda. Como se ele estivesse fazendo alguma coisa que não tem valor. Porque, afinal, a gente mede o valor do que faz é pelo salário mesmo. Se não é reconhecido socialmente e não tem um salário digno, então ele se sente um profissional desqualificado. Também é muito difícil para a escola hoje em dia competir com a televisão, com toda a tecnologia de comunicação, com o celular dentro da sala de aula, o i-pod. O próprio professor não sabe como convencer os alunos que estudar é importante. Ele não sabe explicar. Sem estudar, o jovem já consegue manobrar um monte de pequenas tecnologias que ele vai precisar para viver. Vai ter informação pontual que vem de todos os cantos do mundo e ele acha que com isso está sabendo muita coisa. A própria televisão, que até tem programas informativos, parece muito mais interessante do que a escola.
EC – Mas o papel da escola vai além do simples acesso à informação…
Maria Rita – Acontece que a escola não é só informadora, ela é formadora. É onde se aprende a pensar, a refletir, a respeitar a opinião do outro, a conviver. Talvez os professores estejam um pouco inseguros em relação a isso, não por culpa deles, porque é muito difícil você sustentar alguma coisa num mundo que não valoriza isso. Não valoriza. A gente tem histórias disso, de professores, que são pacientes meus, de pais que dizem para o professor: ‘olha, meu filho não precisa estudar química, física e matemática. Eu sou industrial e ele vai herdar minha indústria, vai ter assessores’, quer dizer, trata a escola como uma espécie de fornecedora de produto. Se não gostar do produto, procura um fornecedor melhor. Conheci uma diretora de escola que deu uma resposta excelente: ‘então pode pôr ele em outra escola, porque esta aqui vai ser a escola que forma os assessores’. Talvez o professor tenha que ser muito apaixonado e, às vezes, você encontra alguns professores que, pelo seu envolvimento e carisma, pela história, pela literatura que transmite, conseguem a adesão de dez alunos numa classe de 40. E isso é muito. Mas o professor pode dizer ‘olha, a sociedade humana produziu muita bobagem, muita porcaria, muita violência, guerra, poluição e destruição. Agora que você está entrando no mundo adulto, vai ter uma pequena amostra grátis do melhor que a humanidade produziu desde Pitágoras e Aristóteles, de Platão e Camões. Se você quiser pegar o seu lugar na sociedade humana, a escola é a melhor porta. O resto você vai ter de sobra lá fora’.
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EC – A senhora tem afirmado que a indústria farmacêutica vai salvar o capitalismo da crise. Por quê?
Maria Rita – Por que é a única indústria que cresce com o sofrimento das pessoas. Quanto mais desemprego, mais ela vende antidepressivos. Quem está sofrendo quer parar de sofrer. Isso é humano e compreensível e há casos em que a medicalização é necessária. De resto, a doença psíquica é a única forma de mal-estar que é incluída na própria linguagem que a nomeia. Se a indústria do câncer quer vender mais quimioterapia, não tem como convencer uma pessoa de que ela tem um câncer. Para as doenças do corpo você pode até divulgar o seu medicamento, mas precisa da doença lá. Já o sofrimento psíquico é contaminado pelas próprias narrativas da indústria. O que a indústria farmacêutica faz? Ela não divulga apenas o remédio nas revistas, nos folhetos que estão nas salas de espera dos consultórios de saúde mental. O que a indústria divulga é a doença. Eu recolhi alguns desses folhetos para fazer o meu trabalho. Anunciam que “depressão tem cura se você se tratar rápido”. E induzem: “se você tiver sete dessas 20 características: excesso ou falta de peso, excesso ou falta de fome, de sono, você pode estar deprimido”. Bom, sete dessas 20 qualquer um de nós tem. O que acontece é uma contaminação. O paciente que já não se sente bem na sala de espera encontra o nome do que ele acha que tem. Ele já entra no consultório dizendo ‘doutor, eu acho que estou deprimido’. E o médico lhe receita um antidepressivo. Como essa pessoa muitas vezes não tem condição de voltar ou volta só para pegar a receita, há pessoas, principalmente de baixa renda, que tomam antidepressivos há 18 anos. Começam a tomar e não param mais, porque parar é complicado, precisa de acompanhamento, não têm tempo, dá efeito secundário se para de repente. O antidepressivo usado dessa maneira produz um esvaziamento, porque ele atenua a sensação de conflito que é vital para a vida psíquica.
EC – Há uma responsabilidade da classe médica nessa medicalização sem critérios?
Maria Rita – Sem dúvida. Podemos dividir os médicos em categorias. Há os comprometidos com a indústria, que recebem dinheiro, que falsificam resultados de pesquisas. Esses são uma minoria, mas fazem um mal como se fossem maioria. Tem a medicina comprometida com o lucro da indústria, os institutos de pesquisa financiados por laboratórios farmacêuticos. E aqueles que são honestos, sérios, mas de fato acreditam que a pessoa é um feixe de neurônios determinado por uma série de funções químicas e o resto é fantasia, é religião. E há muitos psiquiatras que dialogam com a psicanálise, que fazem psicoterapia, que encaminham os pacientes para um psicanalista, que sabem que a cura pela palavra altera a química cerebral.
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EC – Pode adiantar sobre o que será seu próximo livro?
Maria Rita – Ainda não é um livro, mas uma ideia, porque depende de autorização. Gostaria muito de relatar o percurso de análise da primeira pessoa que teve alta no meu trabalho de analista junto a uma escola do MST lá em São Paulo em um livro simples, sem muita teoria, só com algumas observações sobre o que pode ser diferente e o que não é pelo fato de ele pertencer a esse movimento social.