Foto: Igor Sperotto
Morrem de Aids no Rio Grande do Sul mais de mil pessoas por ano, desde 1998, de acordo com os dados do Sistema de Informações de Mortalidade (SIM), divulgados no Boletim 2010 do Ministério da Saúde. Num registro ascendente, de acordo com o mesmo estudo, o estado apresentou um acréscimo de 52% de mortes decorrentes de HIV, enquanto as demais unidades federativas reduziram em 24% óbitos pela mesma causa.
Especialistas e dirigentes da área da Saúde no estado reconhecem essa má-tradição gaúcha quanto ao elevado número de notificações de casos de Aids. Entretanto, ressalvam que, diferente do resto do país, os registros praticados aqui são mais rigorosos.
De acordo com o epidemiologista do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Jair Ferreira, os óbitos são muito investigados no estado. “Se uma pessoa jovem morre de pneumonia, investiga-se para verificar se não era um caso de Aids, o que frequentemente se comprova”, ilustra o médico que recebeu a notificação do primeiro caso de Aids no estado, em 1983, apurado no Hospital Vila Nova, zona sul de Porto Alegre.
A diretora do departamento de Atenção à Saúde da Secretaria Estadual da Saúde, Sandra Sperotto, destaca ainda que, a partir de 2007, as notificações passaram a incluir não apenas os doentes de Aids como também aquelas pessoas que vivem com o vírus HIV, mas que não apresentam sinais ou sintomas da doença. “Nossos sistemas de informação são bastante fidedignos, traduzem muito a realidade do estado. Isso ocorre porque temos uma oferta muito grande de exame, toda Unidade Básica de Saúde pode solicitar exame de HIV”, complementa.
Dos 30 aos 50 anos
Na avaliação de Ferreira, a maior incidência de óbitos por Aids é justamente na faixa etária onde há mais casos da doença, ou seja, entre os mais jovens. “Como as pessoas contraem o vírus na adolescência e na primeira juventude (dos 15 aos 24 anos), e adoecem cerca de dez anos depois, a morte vai ocorrer na faixa dos 30 aos 40 anos”, explica.
Mais recentemente, entretanto, começam a surgir maior número de casos entre pessoas com mais de 50 anos. Segundo o especialista, isso pode ocorrer em decorrência do surgimento do Viagra e da prática de reposição hormonal. A mudança de parceiros, combinada com a falta de hábito ou mesmo a incapacidade de colocar a camisinha por problemas de ereção, aumentam a chance de contrair o vírus. E como o Rio Grande do Sul é o estado onde há maior concentração de pessoas acima de 50 anos, “então isso também pode contribuir”, afirma o epidemiologista.
Para a médica sanitarista e diretora de Ensino e Pesquisa do Sanatório Partenon, Maria Letícia Ikeda, outro fator que pode caracterizar o perfil de quem está morrendo de Aids no estado é o uso de álcool ou outro tipo de droga. Tais usuários ficam mais vulneráveis, pois diminuem a capacidade de se proteger de outras coisas, como, por exemplo, da transmissão do vírus do HIV. Conforme Maria Letícia, “pesquisas nacionais apontam que a população do Rio Grande do Sul é grande consumidora de álcool e drogas, e que a iniciação sexual aqui é mais precoce”. São fatores que podem estar influenciando na epidemia, reforça a médica, que desde 1997 atua junto à questão da Aids no estado.
Em busca de alternativas
Foto: Igor Sperotto
A repercussão da maior incidência de Aids e o crescimento no coeficiente de mortalidade da doença nos últimos dez anos no estado motivou a criação do Comitê Estadual de Investigação da Mortalidade por Aids. De caráter interinstitucional, o Comitê terá como alguns de seus objetivos identificar a magnitude dos óbitos de Aids no RS; subsidiar a formulação de políticas públicas e estabelecer uma rede estadual de vigilância de óbitos por Aids.
Na opinião do epidemiologista e professor da Ufrgs, Jair Ferreira, que integrará o Comitê, representando o Hospital de Clínicas de Porto Alegre, para se avaliar o Programa de Saúde do estado relativo ao atendimento de casos de Aids deveriam ser analisados dados como os de letalidade. Segundo ele, mortalidade é o número de óbitos em relação ao total da população e letalidade é o número de óbitos entre os doentes. De acordo com o pesquisador, não existe hoje no Brasil um estudo nesse sentido. Por isso, “não há como se avaliar como os programas de saúde estão funcionando”.
Foto: Igor Sperotto
Foto: Igor Sperotto
Maria Letícia Ikeda, médica sanitarista do Sanatório Partenon de Porto Alegre, referência estadual no tratamento e acompanhamento dos pacientes com Aids, aponta algumas ações que podem contribuir para combater o atual cenário de Aids no Rio Grande do Sul: diagnóstico precoce; assistência logo após o diagnóstico; indicação do medicamento no melhor momento e adesão ao tratamento. A resistência à adesão, inclusive, é o fator mais recorrente na avaliação de diferentes especialistas quando tentam buscar respostas para o crescimento de 52% de óbitos por Aids no estado.
Foto: Igor Sperotto
Dependendo do estágio da doença, a atividade física é fundamental no tratamento de pacientes com Aids, destaca a enfermeira Núbia Hamester. Por isso, o valor de um prêmio recebido pelo Sanatório Partenon pela excelência dos serviços foi investido na construção de uma academia de esportes que, ironicamente, está fechada por falta de funcionários.
Uma estrutura de aconselhamento
O primeiro Centro de Testagem e Aconselhamento em Aids do Brasil foi criado no Rio Grande do Sul em dezembro de 1998. Hoje, existem 23 Centros, implantados em municípios de médio e grande portes, em lugares estratégicos em função do perfil toxicológico do vírus HIV. Além dos Centros, existem também os Serviços de Assistência Especializada em DST Aids (SAE), nos quais é oferecido o serviço de adesão à terapêutica.
Nos Centros são realizados os testes de HIV conforme a demanda espontânea da população. Os interessados não necessitam apresentar requisição ou pagar pelo serviço, que é oferecido para jovens a partir dos 12 anos de idade. Dependendo da estrutura de cada CTA, a resposta do teste pode levar de 10 a 15 dias, sendo que, em caso positivo, é solicitado um exame confirmatório.
Junto à testagem existe ainda o aconselhamento, quando profissionais realizam entrevistas pré e pós-teste para conhecer o perfil dos possíveis portadores de HIV. É o momento, segundo a coordenadora das ações dos CTAs gaúchos, a psicóloga Lúdia Goulart Mondini, de se desfazerem alguns mitos: “As pessoas confundem a doença com ser portador do vírus. Para muitos, o decreto de um exame reagente (positivo) tem a ver com a perspectiva de viver e morrer. Tem a ver com uma cultura, e tu não mudas isso do dia para a noite”, acrescenta.
Em datas como o Carnaval, o Planeta Atlântida, o Ano Novo e o Dia dos Namorados, a procura para a realização do exame HIV aumenta no estado. Demanda que, na avaliação de Lúdia, poderia ser melhor atendida se o sistema de saúde gaúcho, principalmente a rede básica, fosse voltada para a prevenção. “Talvez não tivéssemos tantos casos novos de HIV/Aids, porque isso é uma falha de todo um sistema”, aponta.
Lúdia participou recentemente de encontro nacional da área, onde foram levantados os problemas quanto à vulnerabilidade individual (do sujeito que se expõe ao risco), a vulnerabilidade social (de toda uma sociedade e cultura) e a vulnerabilidade programática, que tem a ver com as questões de gestão de saúde, da educação, da intersetoralidade (trabalhar todos juntos por um mesmo objetivo). Segundo ela, isso tudo leva ao risco de novas infecções.
Discurso higienista e preconceito
Foto: Igor Sperotto
Há 13 anos trabalhando com pacientes de Aids no estado, a médica sanitarista Maria Letícia Ikeda critica o discurso higienista e autoritário ainda em vigor entre os profissionais de saúde, que insistem em dizer: ‘use camisinha, senão terás doenças’. “Mas a sociedade não se identifica com isso”, argumenta. “No contraponto, temos todos os ícones da sociedade dizendo beba cerveja, seja popular, conquiste muita gente etc. Tenho a convicção de que se a seleção de futebol e o galã da novela usassem camisinha, a sociedade como um todo e, em especial os jovens, iriam ouvir mais do que sendo dito pelo profissional da Saúde, ou nas campanhas específicas como no Carnaval”.
Para atestar a carga do preconceito na vida das pessoas doentes ou portadoras do vírus do HIV, Ikeda lembra a história de como Marina (nome fictício) descobriu que era soropositivo aos 15 anos de idade. Depois de longo período de saúde instável, a decisão de realizar uma série de exames para chegar a um diagnóstico mais conclusivo, resultou numa informação inesperada: Aids.
Perplexa duplamente ante a doença e as perguntas sobre sua suposta iniciação sexual, Marina deparou- se com outra informação inquietante, pois seus pais decidiram revelar à filha e aos médicos que eram portadores do vírus HIV. Hoje a jovem está com 18 anos, tem um companheiro e um bebê de 8 meses (soronegativo). “Ninguém da família, amigos ou colegas de trabalho sabiam da doença dos pais de Marina. É o medo do estigma, do preconceito, o medo de ser rechaçado. Se existe uma coisa que é muito importante nesse cenário é a discriminação”, denuncia.
Klaus (apelido) também faz seu tratamento no Serviço de Assistência Especializada em DST/ Aids do Sanatório Partenon. Ele descobriu que tinha Aids depois do segundo casamento, quando já estava muito doente. Jornalista, nascido no Rio Grande do Sul, morava no Rio de Janeiro na época, há mais de dez anos, e decidiu voltar ao estado natal em busca de tratamento. Aos 71 anos, ele é considerado pela sanitarista Maria Letícia um paciente exemplar, pois segue à risca a medicação. Confessa que não ficou assustado quando foi informado que estava com Aids, mas agora diz ter aprendido a importância de usar o preservativo. Faz questão de dizer que encara sua condição com bom-humor e está “apaixonado pela vida”. “Só não saio por aí dizendo que tenho HIV”, ressalva.
Como a escola lida com a questão da sexualidade?
Preocupa o fato do adolescente estar iniciando sua vida sexual sem a consciência da importância do uso do preservativo, o que pode resultar em duas consequências difíceis de serem enfrentadas: a gravidez precoce ou a transmissão do vírus HIV. Maria Letícia Ikeda, médica sanitarista do ambulatório de HIV/Aids do Serviço de Atenção e Terapêutica do Sanatório Partenon, levanta uma questão que considera fundamental: como a escola lida com a questão da sexualidade? Ou como o professor lida com a própria sexualidade? “E quando se fala em HIV, fala-se em sexualidade”, destaca.
Na segunda quinzena de junho, foi postada na página do Ministério da Saúde a primeira edição de uma série de histórias em quadrinhos ilustradas por desenhistas da Marvel Comics, abordando assuntos polêmicos como a Aids e o preconceito contra quem vive com HIV/Aids. A publicação faz parte do projeto Saúde e Prevenção nas Escolas (SPE), uma iniciativa dos Ministérios da Saúde e da Educação, com a parceria da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), do Fundo de População das Nações Unidas (Infpa) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef ).
Outra iniciativa do programa é o Revisitando a Adolescência, destinado aos professores. Maria Letícia já participou dessa atividade em escolas públicas no estado e ficou surpresa ao observar como há professores que esqueceram o que significa ser jovem, e de todas as angústias que isso representa. “Como é que vou usar preservativo se tudo é escondido? Por que não é admitido nem pelo meu pai, nem pela minha mãe, nem pela escola”? Na opinião da médica, “a gente finge que não sabe que eles já iniciaram sua vida sexual. E isso só vai aparecer com uma gestação, a partir daí a preocupação passa a ser não engravidar, tomar anticoncepcional ou, havendo a gravidez, uma das saídas encontradas é fazer o aborto. Só que o HIV não tem esse tipo de solução”.
Foto: Igor Sperotto
Serviço
Sites:
http://www.aids.gov.br/
http://www.agenciaaids.com.br/site/
Disque Aids
0800 54 10197