SAÚDE

Saúde privada, problemas públicos

Os planos de saúde exploram as lacunas deixadas pelo SUS, crescem e faturam cada vez mais, porém deixam a desejar na qualidade dos serviços
Por Clarinha Glock / Publicado em 17 de dezembro de 2010

Saúde privada, problemas públicos

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

Houve um tempo em que manter um plano de saúde privado era uma garantia de atendimento rápido e de melhor qualidade que o do Sistema Único de Saúde (SUS) e um privilégio de quem tinha uma renda acima da média. O crescimento da demanda gerou uma oferta maior de operadoras e a criação, pela Lei 9.961, de 2000, da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), vinculada ao Ministério da Saúde, para regular o setor. Mas hoje os médicos reclamam dos baixos honorários, os laboratórios denunciam o monopólio do mercado, os hospitais carecem de vagas. No meio disso tudo está o paciente que só quer resolver seu problema de saúde e se sente frustrado quando paga muito por um serviço em que se sente mal-atendido.

Nos últimos dez anos, houve um crescimento de cerca de 57% no número de beneficiários de planos de assistência médica registrados no Sistema de Informações da ANS. Se em junho de 2000 havia 33.103.675 usuários, no mesmo período de 2010 chegou a 57.662.487 (considerando os planos odontológicos). As causas do aumento da demanda estão ligadas ao crescimento da economia com um maior poder aquisitivo de parte da população, e à impossibilidade de o Sistema Único de Saúde (SUS) incorporar todos os trabalhadores. “Obrigatoriamente, o número de médicos credenciados deveria ter acompanhado o aumento de usuários, mas as filas e a dificuldade de agendamentos de consultas indicam o contrário”, analisa Marcio Bichara, diretor de Saúde Suplementar da Federação Nacional de Médicos (Fenam). Segundo Bichara, nem a ANS, nem a Fenam sabem ao certo qual é a quantidade de especialistas credenciados – já que o contrato é direto com as operadoras, são elas quem têm essa informação. A Fenam estima que atualmente haja 180 mil médicos credenciados nos planos de saúde.

O fato é que, em 2009, pelo 10º ano consecutivo, os planos de saúde lideraram o ranking de reclamações feitas ao Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec). Uma enquete realizada durante três semanas de julho pelo Idec mostrou que 88% dos 616 usuários consultados sofreram com a demora de atendimento dos médicos vinculados a seu plano de saúde. Relataram que algumas consultas e exames foram marcados só para um mês a seis meses depois e reclamaram da burocracia para liberação de exames e cirurgias.Queixam-se os pacientes, e mais ainda os médicos. “A situação está caótica”, avalia Marcio Bichara, diretor de Saúde Suplementar da Federação Nacional dos Médicos (Fenam). “Nos últimos dez anos, tivemos um reajuste de 136% dos planos para os usuários, mas não foram repassados nem 50% para os profissionais”, explica.

Pediatras de Brasília se descredenciaram e conseguiram negociar um aumento. No mesmo caminho estão os ginecologistas de São Paulo, que paralizarqam os atendimentos como forma de protesto no último dia 30 de novembro. E há mais protestos previstos em todo o país. Bichara participa de um grupo que discute junto à ANS a possibilidade de rever os contratos com os planos de saúde para todas as especialidades, com reajustes anuais. A Fenam pediu a mediação do Ministério Público Federal.

O presidente da Sociedade Brasileira de Análises Clínicas, Irineu Grinberg, diretor do Laboratório de Análises Clínicas Lafont, denuncia ainda que há um direcionamento de clientes dos planos de saúde privados para laboratórios próprios ou que concordam em pagar honorários mais baixos, e que as operadoras estão comprando laboratórios e hospitais. Segundo Grinberg, dois grupos monopolizam o setor: o Laboratório Fleury (que comprou os Laboratórios Weinmann e Faillace) e o Diagnóstico das Américas SA (Dasa), que também adquiriu laboratórios em todo o país – este último, com capital norte-americano. “A ANS deve aumentar a fiscalização para qualificar o serviço, com sistemas de acreditação obrigatórios, um tipo de ISO da Saúde”, acredita. “Assim, o público poderá buscar os mais qualificados”, diz.

Essa situação existe porque o Brasil tem um sistema contraditório de saúde, analisa o economista e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) Carlos Octávio Ocke Reis. Como prega a Constituição, a saúde é um direito de todos, mas ao mesmo tempo obedece a um sistema de mercado. Neste contexto, o economista vê duas saídas: ampliar os recursos financeiros para o SUS, melhorando a qualidade de gestão; e regulamentar os preços e subsídios do setor de saúde privado, ampliando a discussão com a sociedade e o próprio governo sobre seu funcionamento. Para Ocke Reis, é preciso regular a força de trabalho médico, para que os profissionais não precisem ter cinco ou seis empregos, o que só traz desvantagens. Outra sugestão é lançar um seguro social semelhante ao que havia no passado, como INPS ou Inamps. Seria um sistema fechado, diferente do SUS, financiado pelo Estado, com participação do empregador e do empregado. “Um seguro social que dialogue com o setor público, com melhores preços e opções para a população”, conclui.

Número de leitos é outro problema

Número de leitos é outro problema

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

Em agosto de 2010, os hospitais públicos e privados de Porto Alegre se viram em meio ao caos, com emergências lotadas. Três meses depois, o problema de vagas parece ter diminuído em alguns estabelecimentos, mas os riscos de que se repita continuam.

Segundo a pesquisa Assistência Médico-Sanitária 2009 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil perdeu mais de 11 mil leitos hospitalares no setor privado entre 2005 e 2009. E ainda que no Rio Grande do Sul a situação seja um pouco melhor que no resto do país, porque houve um acréscimo de 455 locais de internação, esse número não compensa perdas de anos anteriores. De 2002 a 2005 (data do levantamento anterior), a diminuição foi de mais de 2 mil leitos.

Em Porto Alegre, desde 1995 cinco hospitais foram fechados, não sendo substituídos. Apesar destes fatos, e de admitir que houve congestionamentos na emergência e na marcação de consultas na metade do ano, Roberto Plentz, gerente de Marketing do Complexo Hospitalar Santa Casa de Porto Alegre, assegura que ali não faltam leitos para os conveniados. Afirma que a implantação do sistema da Organização Mundial de Saúde, em que os pacientes atendidos a partir de uma classificação por riscos, e não por ordem de chegada, vai ajudar a colocar em ordem o atendimento e evitar problemas futuros.

Número de leitos é outro problema

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

Para o neurocirurgião Arlindo Alfredo Silveira D’Ávila, presidente da Associação dos Médicos do Hospital São Lucas, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, será preciso mais do que esta medida. “A capacidade instalada está esgotada e é preciso esperar por leitos”, denuncia. Mercadologicamente, diz D’Ávila, um hospital é um péssimo negócio: os custos são altos e crescentes; a competição não recompensa os melhores; a inovação tecnológica não gera melhorias como se esperava. É um processo semelhante ao aviltamento por que passam os médicos: mal pagos, perdem a liberdade de comprar livros, pagar cursos, e acabam aceitando o patrocínio dos laboratórios, quando não cedem à tentação de cobrar serviços por fora das tabelas. “Tem que remunerar melhor, fiscalizar quem não age de maneira adequada e oferecer ao paciente o que ele realmente precisa, gastando apenas o necessário, com o conhecimento que a Ciência proporciona”.

“A gente se sente desamparada”
A engenheira química e consultora de empresas, Enoilza Almeida, relata o drama vivido pelo pai, Oscar Bittencourt de Almeida, de Cambará do Sul: “Meu pai era professor e pagou durante 35 anos (até se aposentar) um valor equivalente a 40% do salário para ter o melhor plano de saúde oferecido pelo Estado, o IPE. No único momento em que precisou do benefício, tivemos de entrar na Justiça. Há cerca de quatro anos, aos 83 anos de idade, teve um infarto e o médico indicou colocar dois stents no coração. A cirurgia já estava marcada, mas o plano de saúde se negou a pagar os stents importados indicados pelo médico. Alegou que não havia justificativa, que só pagaria pelos equivalentes nacionais. O médico explicou que o importado era melhor, por questões técnicas.

Era um momento de fragilidade, de uma cirurgia arriscada, e a gente no meio do fogo cruzado. Quando soube que o stent importado custava cerca de R$ 15 mil e o nacional de R$ 3 mil a R$ 4 mil entendi que o problema não era de saúde, mas econômico. Era preciso tomar a decisão certa. E se a gente autorizasse colocar o nacional e o pai morresse? Entramos na Justiça e conseguimos uma liminar rapidamente para fazer a cirurgia com o produto importado. Meu pai está muito bem hoje, com 87 anos.

Dá uma revolta em um primeiro momento. Mas a sensação que fica é de desamparo. A gente paga um plano de saúde e, quando precisa, dizem “não pode”. E aí temos que esperar que a Justiça seja ágil para resolver”.

A cada ano, mais ações na Justiça

A cada ano, mais ações na Justiça

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

Experiente em processar operadoras de planos de saúde que não atendem como deviam seus clientes, a advogada Roberta Sirangelo Cauduro quase teve de atuar em causa própria. Apesar de haver contratado um plano um ano antes de engravidar, e de ter planejado com antecedência em que hospital ganharia seu bebê, a operadora lhe negou três vezes a cobertura justo no momento em que entrava no hospital para o parto. Nervoso, seu marido assistiu a uma funcionária do estabelecimento hospitalar insistir até que alguém do plano de saúde admitiu que o convênio cobriria os custos.

Uma ação recente da advogada ganhou notoriedade quando, em junho de 2010, por decisão unânime, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) condenou a Unimed Porto Alegre a pagar uma indenização de R$ 10 mil por danos morais a Patrícia Freeze Miguel, que havia sido submetida a uma cirurgia de urgência para retirada da vesícula biliar. O plano de saúde se negara a cobrir as despesas. Patrícia havia contratado o convênio em março de 2004 e, em abril do mesmo ano, necessitou da cirurgia em caráter emergencial. A Lei 9.656 de 1998 diz que em situações de urgência a carência dos planos é de 24 horas. O plano alegou que não era o caso. A família de Patrícia rateou a despesa e, depois da cirurgia, ainda em recuperação, a paciente buscou o ressarcimento. A Justiça de 1º grau determinou a devolução dos valores pagos, mas o processo teve ir ao STJ para garantir também a indenização por danos morais. Outro paciente de 38 anos, desta vez de um plano particular empresarial, precisou entrar na Justiça porque a operadora autorizou a cirurgia de colocação de um stent (um pequeno tubo flexível usado para desobstruir uma artéria do coração), mas depois cobrou R$ 5 mil pelo material. Roberta conseguiu uma liminar para suspender a cobrança.

A advogada especializada em Saúde Tarcila Del Rey Campanella, presidente da Comissão de Saúde e Cidadania da Ordem dos Advogados do Brasil de São Caetano do Sul, São Paulo, informa que, só em 2010, encaminhou mais de 80 processos, e a tendência é aumentar. Diz que há uma demanda de ações com pedido liminar obrigando os planos de saúde a cobrirem cirurgias, próteses, órteses, quimioterapia, radioterapia e internações de urgência. “Há ainda os pedidos de liberação de exames de alto custo e de cancelamento de reajuste de faixa etária para pessoas maiores de 60 anos em mensalidades”, afirma. Em geral, a Justiça têm dado ganho de causa para os pacientes, avisa.

A cada ano, mais ações na Justiça

Foto: Igor Sperotto

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“O convênio quer dizer o que eu posso ou não posso fazer”
Um médico que atende em um dos principais hospitais do estado, fez este desabafo: “Quando há procedimentos cirúrgicos em que se tem que colocar parafusos, ou próteses ósseas, o encaminhamento para a liberação do convênio passa por uma avaliação demorada. Eles alegam que a lei permite três a cinco dias úteis para fazer a análise no caso das cirurgias eletivas (aquelas em que se pode marcar uma data com antecedência). Quando é urgência, muitas vezes a equipe médica quer utilizar o material e não sabe se o convênio vai ressarcir. Quem acaba pagando a conta é o paciente, porque o hospital não assume o prejuízo se o convênio não autorizar.

O convênio quer dizer o que posso ou não posso fazer. Glosar é quando se faz a cirurgia com autorização, e depois os convênios não pagam, ou o médico encaminha o pedido para que autorizem determinados códigos do procedimento cirúrgico, e uns eles autorizam, outros não – as operadoras glosam dizendo que o procedimento não tem cobertura, ou não é necessário. Tem aumentado o número de situações assim.

Não atendo mais alguns convênios devido ao baixo honorário. A gente ganha valores irrisórios por cirurgias de alta complexidade, que levam 3 a 4 horas – algo em torno de R$ 60, R$ 80. É complicado exercer a atividade médica hoje”.

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