A longa estrada da vida
Igor Sperotto
Igor Sperotto
O delegado da 1ª Coordenadoria Regional de Saúde (CRS), Rodrigo Pacheco Lima, concorda que o que se convencionou chamar de ambulancioterapia “existe sim, e não tem como negar”. Ele diz que não é apenas na Região Metropolitana que isto ocorre. Guardadas as proporções, se repete em outros centros como Caxias do Sul, Pelotas, Santa Maria. “Isto acontece porque são referências em serviços de alta complexidade, então, fatalmente, quem precisa deles têm de se deslocar”.
Sua colega, Rosângela Dornelles, delegada da 2ª CRS, acrescenta que o problema ocorre porque, ao longo dos anos, foram dados todos os incentivos para colocar serviços mais especializados na capital. “Isto, historicamente, gerou um acúmulo de serviços tanto de média quanto de alta complexidade”, fazendo com que os municípios não tenham alternativa a não ser encaminhar seus pacientes para a capital.
PARTIDARIZAÇÃO – Mas há ainda outra causa para que o fenômeno “ambulancioterapia” aconteça e ela tem a ver com interesses partidários na gestão. Os conselhos de Saúde – órgãos criados por legislação para garantir a participação da sociedade nas questões do SUS – acumulam denúncias contra prefeitos e secretários de Saúde que consideram ser mais fácil adquirir veículos com capacidade para transportar pacientes para os grandes centros do que assegurar condições de atendimento em seus municípios e criar redes para troca de serviços com seus vizinhos.
É o resultado da “partidarização” da gestão, tão combatida pelo controle social do SUS. Tanto que, na 14ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em 2011, foram aprovadas as propostas de “garantir que os gestores do SUS sejam profissionais de carreira, escolhidos conforme qualificação profissional compatível com as atribuições do cargo” e que “a gestão do SUS, em todas as esferas (municipais, estaduais e federal) e em todos os serviços, seja 100% pública e estatal, e submetida ao controle social”. Ao instituir a “profissionalização da gestão do SUS em todos os níveis, com os cargos ocupados por profissionais de carreira concursados, com formação e perfil necessários para atenderem às necessidades do SUS e da população brasileira”, como está no relatório final da 14ª Conferência, muitos gestores deixarão de se sentir secretários de transporte para, efetivamente, se ocuparem da saúde.
Alta complexidade é em Porto Alegre
Igor Sperotto
Mirele Policarpo soube que o filho Vicente tem uma grave doença nos olhos quando ele tinha apenas dois meses e meio. Foi diagnosticado com glaucoma congênito e, desde então, tem sido rotina para os dois percorrer o trecho de Tramandaí, região litorânea onde moram, até a Santa Casa, em Porto Alegre. Vicente tem apenas dois anos, mas já passou por três cirurgias neste hospital e outras três no hospital Banco de Olhos. “Saí com ele às 4 horas para chegar aqui às 6h40min. É dia de consulta para marcar novos exames”, conta a mãe. O menino não pode parar com nada no tratamento, senão perde a visão. Suas necessidades só foram atendidas na capital, onde estão instalados os equipamentos para doenças de alta complexidade, como é o caso dele.
A aposentada Irene Machado não vem de muito longe para acompanhar o marido, Luiz José, que fez um transplante de rins há 30 dias no Hospital Dom Vicente Scherer. Eles são de Novo Hamburgo, na Região Metropolitana, e os serviços de saúde mais complexos são referenciados em Porto Alegre mesmo. Especialmente se tratando de transplante. O problema para o casal é a espera pelo transporte. “Hoje viemos com o micro-ônibus da prefeitura, mas ele tem retorno programado para as 15 horas e meu marido tem consulta às 16 horas. O jeito é pegar um ônibus ou metrô, quase sempre lotado, com tudo que é gente dentro”. A preocupação de Irene é que o marido usa máscara cirúrgica no rosto para se proteger.
Estrada mesmo percorre o motorista Elson Braga que, diariamente, vence quase 300 quilômetros entre São Sepé e Porto Alegre para que os pacientes do SUS tenham atendimento. “Problema é a distância, é muito cansativo. São Sepé pertence a Santa Maria (região de referência), mas lá já não comporta mais”, avalia.
Gestores furavam a fila no sistema antigo
Outro motivo apontado pelo delegado Rodrigo Lima para a aglomeração nos grandes centros é que, até o momento, não existia uma política de descentralização dos serviços. “Mas isto está sendo feito agora”, garante, acrescentando que a gestão estadual está voltada para potencializar os grandes centros existentes no interior. “É necessário fazer com que as regiões de Saúde sejam autossuficientes o máximo possível na sua estrutura e prestação de serviços”.
Lima se baseia na Lei 7.508/2011, que trata da regionalização. A partir do ano passado, o estado foi dividido em 30 regiões de Saúde. “Há todo um trabalho e planejamento, com análise situacional destas regiões para estabelecer novas redes que vão aliviar não só Porto Alegre, mas outros centros”. O delegado diz ainda ser preciso aprimorar a regulação dos serviços dos prestadores, bem como a regulação feita pelo Estado e o município de Porto Alegre. O que se tem hoje é uma conta que não fecha: a oferta é muito menor do que a demanda.
O Estado deveria aplicar 12% do orçamento em saúde, mas não está chegando a 6%. Como os gestores municipais assumiram seus mandatos em 2013 e muitos são inexperientes, a regionalização, que também é nova, ainda engatinha.
REGIONALIZAÇÃO − Para Rosângela Dornelles, fazer deslanchar a regionalização é, antes de tudo, uma questão de humanidade, pois as pessoas passarão a ter atendimento mais próximo à sua casa. E o Estado, diz, vai intensificar o processo, regionalizando, pelo menos especialidades mais viáveis, como cirurgias eletivas (hérnia e vesícula, por exemplo), oftalmologia de média complexidade, otorrino, traumatologia, proctologia, urologia. “Isto já está acontecendo”, comemora. Na 2ª CRS foram quase 4 mil novas consultas em dois anos.
REFERÊNCIA − Mas a ideia é que Porto Alegre siga sendo referência para a alta complexidade. “Os pacientes continuarão sendo trazidos, porque aqui é que está a capacidade instalada para esses serviços”. Rosângela informa que, quando foi criada a Central Ambulatorial Estadual, há quase dois anos, foi pactuada a oferta de 45% do que é produzido dentro de Porto Alegre para pacientes da Região Metropolitana e interior. Isto por critério populacional. Cada município tem sua cota, de acordo com a população. “O que não pode mais é ligar e conseguir a vaga, é tudo via sistema Aghos”, o que mostra que sim, alguns gestores tinham o poder de furar a fila.
Uma parada a cada cruz no caminho
Igor Sperotto
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Agudo é referência para a região de Santa Maria, mas o motorista da van que trouxe o casal e outros pacientes para a capital, Daniel de Deus, informa que a região não comporta mais atendimentos em oncologia. Daniel conta que tem de sair às 3 horas para chegar às 7 horas e distribuir os usuários da saúde pública nos seus locais de atendimento. “Onde tem uma cruz para atendimento do SUS eu paro”, brinca. Ele sai com 15 passageiros na van e, quando todos estão prontos, faz o caminho de volta, em torno das 17 horas.
Há dois anos, a dona-de-casa Maria da Rosa sai de casa, em Barros Cassal, distante 256 quilômetros de Porto Alegre, às 2 horas da manhã sabendo que só vai voltar à noite do mesmo dia. Ela é uma de um grupo de pacientes que fazem uma viagem de 4 horas em um transporte fornecido pelo município de origem. Sua busca é por exames e tratamentos oftalmológicos que ela não consegue na região de Passo Fundo, referência para Barros Cassal. Conseguiu na Santa Casa. “Deus me livre, é um desgaste essa viagem”, desabafa. Maria tentou tratamento mais perto, chegou a ir a Encantado, “mas não deu”.
Necessidades versus interesses
Igor Sperotto
Motorista do município de Camaquã, distante 130 quilômetros, André Rocha informa que, todos os dias, saem quatro micro-ônibus para Porto Alegre. “A estrada é que é o problema, principalmente a BR 290, sempre trancada”. Ele sai às 3 horas da manhã para chegar às 6h30min. “A primeira consulta é às 7 horas, aí têm outras às 14h30min. Aí tem que esperar, né, porque todos têm que ir embora juntos”. Ele explica que, “dependendo do estado do paciente, nós não carregamos. Paciente com feridas, operado de câncer, que não se segura e se urina, estes vão de ambulância”.
A delegada Rosângela Dornelles considera que a regionalização também enfrentará problemas com alguns pro ssionais, especialmente médicos, que não têm interesse em trabalhar no interior. “A lógica da construção de rede deve ser constituída a partir das necessidades e não mais segundo uma lógica que atende alguns interesses”. Rosângela aponta que, dentro da regionalização, há a necessidade de mapear hospitais com potencialidades para serem referência nas regiões. Mas a atenção básica, que é a porta de entrada para o SUS, não pode perder espaço. “Na atenção básica funcionam equipes multidisciplinares, se fala na saúde das pessoas em primeiro lugar e não na doença”.
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