Cessam as campanhas, cessam as doações
Foto: Leonardo Savaris
“Todo mundo pode ser doador, porque algo sempre pode ser aproveitado, independente da idade”. Quem ensina é o diretor-médico do Centro de Transplantes da Santa Casa, o cirurgião torácico José Camargo, referência em transplante pulmonar na América Latina. Ele afirma que a base para uma cultura doadora de órgãos e tecidos está na educação. “Nós não temos ritmo quando o assunto é doação e ritmo deve ser uma constante. Aqui, no Brasil, dependemos de campanhas espasmódicas e generosas, desencadeadas pela mídia, uma conduta errática e que não tem durabilidade. Cessam as campanhas, cessam também as doações”.
Camargo sentencia que a doação de órgãos e tecidos é algo muito sério para depender de processos episódicos. “Para se ter uma ideia, em abril foram feitos cinco transplantes pulmonares, mais de um por semana. Em seguida, não foi feito mais nenhum. E que ocorre, então? Começam a morrer pessoas na fila”. O médico observa que a sociedade gaúcha tem um desempenho “bastante razoável” quando solicitada a doação e diz que 72% das famílias se mostram sensíveis à causa.
Explica que o sistema de doação possui dois pontos fundamentais: um é a sociedade, que deve ser sensibilizada, e o outro é a estrutura pública, responsável pela solicitação de doações. “Mas há aí um problema muito grave, não há sistematização da busca por órgãos. Em países mais desenvolvidos há uma busca ativa constante”. Ele critica o fato de se apostar demais nas condições das famílias para tomar a decisão. “É exigir muito de quem está traumatizado pela perda. No momento de derrota e de sofrimento, muitas famílias nem têm condições de lembrar que existe a possibilidade”.
José Camargo lembra que doação de órgãos e tecidos é uma solicitação de generosidade em um momento em que a situação é de revolta, ou seja, é necessário mediar dois sentimentos opostos. “É comovente o esforço que as famílias fazem para cumprir a vontade de uma pessoa em vida”. E critica o fato de que ainda não haja uma estrutura para que todos os casos de morte encefálica sejam comunicados.
Apesar das dificuldades, o médico acredita que o desenvolvimento de uma cultura doadora pode-se dar nos ambientes escolares, ensinando as crianças a conviver com esta necessidade social. Vale lembrar que todo tipo de órgãos e tecidos podem ser doados, como coração, pulmão, fígado, pâncreas, rim, córneas, ossos, músculos e pele. Camargo noticia ainda que uma equipe da Santa Casa está se preparando para efetuar um transplante chamado multivisceral, onde está incluído o intestino, até o momento feito somente em São Paulo.
Mitos comuns que prejudicam
Rosana Nothen, coordenadora da Central de Transplantes do RS, observa que a conta de que cada doador pode salvar oito vidas é apenas um expediente publicitário. “Dificilmente encontraremos um doador tão completo, até por razões logísticas e de manutenção do órgão. Não é comum. Pode acontecer, mas não é exato”. Ela explica que, na Europa, a taxa não chega a três órgãos por doador. Nos Estados Unidos, é em torno de cinco por doador e, no Brasil, a média é de 2,5 por doador.
Para que haja doação de órgãos, no Brasil, é necessária a constatação de morte encefálica, que é algo bastante sedimentado na literatura médica. A morte do cérebro faz com que a pessoa pare de respirar. Ausência de respiração provoca parada cardíaca. O coração segue batendo mais um tempo mas, aos poucos, há a falência. “A necrose vai se instalando na medida em que a circulação não chega mais”.
A estatística médica aponta que a morte encefálica ocorre em 60 de cada um milhão de habitantes. No Rio Grande do Sul esta estatística é comprovada pois, em 2013, foram 579 notificações por morte encefálica em um território com cerca de 10 milhões de habitantes. “Isto significa 32,5% do total. Não é um índice ruim, estamos entre os melhores do país, mas podemos melhorar muito. Há países que chegam a 60 ou 70% das doações”. Rosana informa que, em 2014, os níveis de doações caíram bastante. Ela ainda não pode dizer ao certo porque isto ocorreu, mas acredita que eventos como a Copa do Mundo e as ondas de calor podem ter interferido no processo. “O que posso afirmar é que nossa equipe segue seu trabalho obstinado pela captura”.
Em 2013, havia 2 mil pessoas na lista de espera por um órgão e foram computados apenas 200 doadores. Para a médica, o principal empecilho para se chegar a níveis mais altos de doações é a recusa das famílias E o motivo é cultural. “As pessoas falam muito pouco da morte, é como se ela não existisse. Para viver mais feliz é necessário que se confronte, que se perceba que a vida é finita, que vamos perder quem amamos, que a morte é o fim de um processo”.
E ela faz questão de lembrar que a morte encefálica é um dos diagnósticos mais bem estabelecidos da Medicina. “A Universidade de Harvard, uma das mais conceituadas do mundo, publicou uma diretriz sobre o assunto, quer dizer, são quase 50 anos de vigência deste conceito”. Esta diretriz aponta que a morte encefálica é irreversível, o desgaste dos órgãos é só uma questão de tempo.
Morte encefálica é uma forma muito rara de morrer. Em torno de 2% a 4% ocorrem em ambientes hospitalares, que é onde o provável doador estará. Para diagnosticá-la são feitos dois exames clínicos mais um exame de imagem ou ainda um exame funcional do cérebro. Pelo menos três médicos estarão envolvidos neste processo. “Nunca se certifica a morte encefálica antes de 6 horas e é muito clara, tecnicamente, a diferença entre ela e o coma. Tudo é certificado e assinado.
A médica faz um lembrete: a vida atribulada que se leva hoje, com o crescimento de casos de obesidade, poluição, diabetes, má alimentação/nutrição, sedentarismo… é mais provável que estejamos dentro da lista para transplantes do que fora dela. O problema pode estar mais perto do que se pensa.