SAÚDE

Hospital rural do México substitui camas por redes

Prática de antropologia médica adapta os serviços de saúde aos costumes da população em comunidade da península de Yucatán
Por Gilson Camargo / Publicado em 10 de janeiro de 2018
Enfermaria da maternidade do hospital rural de Hecelchakán

Foto: IMSS Campeche/ Divulgação

Enfermaria da maternidade do hospital rural de Hecelchakán

Foto: IMSS Campeche/ Divulgação

Com pouco mais de dez mil habitantes, na sua maioria indígenas descendentes da etnia maia, a província de Hecelchakán é uma das 24 comunidades do sudeste do estado de Campeche, na fronteira com a península de Yucatán, no Golfo do México. Nesse lugarejo isolado a quase mil quilômetros da capital mexicana imperam as tradições herdadas dos povos indígenas arauaques que se instalaram nas Antilhas e no Caribe quando os espanhóis colonizaram a região, no século 16.

Entre os hábitos levados pelos colonizadores, as redes de dormir são uma unanimidade entre a população local e acabaram se tornando um entrave para os serviços de saúde pública prestados pelo Instituto Mexicano de Seguro Social (IMSS), já que a maioria dos pacientes acostumados a descansar em redes não conseguia se adaptar às camas do hospital local, especialmente as parturientes. “Eles nascem, crescem, se reproduzem e morrem nas suas redes, acostumados a usá-las quando descansam e dormem, e não estão familiarizados com camas hospitalares, que são desconfortáveis, desagradáveis ​​e produzem fadiga”, explica, em entrevista por e-mail, o médico especialista em medicina familiar Roberto Campos Navarro, professor titular da Faculdade de Medicina da Universidade Nacional Autônoma do México (Unam).

O médico Roberto Navarro, professor da Universidade Autônoma do México e autor de livro sobre medicina indígena, coordena o projeto "Prospera"

Foto: IMSS Campeche/ Divulgação

O médico Roberto Navarro, professor da Universidade Autônoma do México e autor de livro sobre medicina indígena, coordena o projeto “Prospera”

Foto: IMSS Campeche/ Divulgação

Nas últimas duas décadas, Navarro coordena o projeto de antropologia médica Hamacas (Redes), que vem substituindo as camas por redes no Hospital Municipal de Hecelchakán. Ele reforça que a maioria dos habitantes rurais e até moradores urbanos da península de Yucatán são usuários de redes por questões de tradição e devido ao clima extremamente quente da região. Assim, a incorporação das redes no ambiente hospitalar é qualificada por eles como facilitadores da recuperação física. “A antropologia como disciplina das ciências sociais não só desenvolve discursos e teorias, mas tem propósitos de aplicação. O principal benefício é a satisfação que os pacientes têm pelos serviços oferecidos pela instituição hospitalar para que se sintam como se estivessem em suas próprias casas e percebam que a instituição está pensando no seu conforto e recuperação rápida”, ressalta.

Iniciativa beneficia mulheres após o parto e idosos que sempre usaram redes para descanso e convalescença

Foto: IMSS Campeche/ Divulgação

Iniciativa beneficia mulheres após o parto e idosos que sempre usaram redes para descanso e convalescença

Foto: IMSS Campeche/ Divulgação

O projeto que começou há 20 anos tem beneficiado, em particular, mulheres após o parto e pessoas idosas que sempre usaram redes para descanso e convalescença. A adoção de redes começou de forma experimental em 1996. “O sucesso foi imediato e o projeto foi mantido até 2007, quando foi cancelado unilateralmente pelas autoridades de nível central na Cidade do México, que dormem em camas e desconheciam a cultura das redes no sudeste mexicano. No entanto, a partir de 22 de junho de 2017 foram reintegrados a partir da normativa nacional 777 do IMSS, na sua versão chamada “Prospera”, que indica mudanças nos estabelecimentos de saúde de acordo com os costumes locais e regionais. A modificação foi plenamente aceita pela comunidade, com grande repercussão nos meios de comunicação social locais e internacionais”, relata Navarro.

“Americo Vespucio descubre América”, gravação de Theodor Galle, do século 15: as “hamacas” foram introduzidas nas Antilhas e no Caribe pelos colonizadores espanhois

Imagem: Theodor Galle/ Domínio Público

“Americo Vespucio descubre América”, gravação de Theodor Galle, do século 15: as “hamacas” foram introduzidas nas Antilhas e no Caribe pelos colonizadores espanhois

Imagem: Theodor Galle/ Domínio Público

O hospital rural de Hecelchakán atende uma população de origem maia, mas também residentes menonitas (anabaptistas de origem europeia) com assentamentos recentes na região e que, devido ao clima quente da península, estão aderindo ao uso de redes. A substituição das camas hospitalares é parcial: há uma seção de redes para mulheres, e outra para homens está sendo implementada. “A população local e regional recebeu o projeto com entusiasmo, inclusive manifesta orgulho por ser o único hospital em toda a da península que tem esse serviço”, afirma Navarro, que em 2015 publicou o livro Nadie nos puede arrebatar nuestro conocimiento (Ninguém pode tirar nosso conhecimento, 2015), que aborda a medicina tradicional indígena, suas origens, importância histórica, e principalmente os processos de legalização aos quais essas tradições foram submetidas até serem reconhecidas como alternativa médica no México e na Bolívia.

Comentários