Hospital rural do México substitui camas por redes
Foto: IMSS Campeche/ Divulgação
Com pouco mais de dez mil habitantes, na sua maioria indígenas descendentes da etnia maia, a província de Hecelchakán é uma das 24 comunidades do sudeste do estado de Campeche, na fronteira com a península de Yucatán, no Golfo do México. Nesse lugarejo isolado a quase mil quilômetros da capital mexicana imperam as tradições herdadas dos povos indígenas arauaques que se instalaram nas Antilhas e no Caribe quando os espanhóis colonizaram a região, no século 16.
Entre os hábitos levados pelos colonizadores, as redes de dormir são uma unanimidade entre a população local e acabaram se tornando um entrave para os serviços de saúde pública prestados pelo Instituto Mexicano de Seguro Social (IMSS), já que a maioria dos pacientes acostumados a descansar em redes não conseguia se adaptar às camas do hospital local, especialmente as parturientes. “Eles nascem, crescem, se reproduzem e morrem nas suas redes, acostumados a usá-las quando descansam e dormem, e não estão familiarizados com camas hospitalares, que são desconfortáveis, desagradáveis e produzem fadiga”, explica, em entrevista por e-mail, o médico especialista em medicina familiar Roberto Campos Navarro, professor titular da Faculdade de Medicina da Universidade Nacional Autônoma do México (Unam).
Foto: IMSS Campeche/ Divulgação
Nas últimas duas décadas, Navarro coordena o projeto de antropologia médica Hamacas (Redes), que vem substituindo as camas por redes no Hospital Municipal de Hecelchakán. Ele reforça que a maioria dos habitantes rurais e até moradores urbanos da península de Yucatán são usuários de redes por questões de tradição e devido ao clima extremamente quente da região. Assim, a incorporação das redes no ambiente hospitalar é qualificada por eles como facilitadores da recuperação física. “A antropologia como disciplina das ciências sociais não só desenvolve discursos e teorias, mas tem propósitos de aplicação. O principal benefício é a satisfação que os pacientes têm pelos serviços oferecidos pela instituição hospitalar para que se sintam como se estivessem em suas próprias casas e percebam que a instituição está pensando no seu conforto e recuperação rápida”, ressalta.
Foto: IMSS Campeche/ Divulgação
O projeto que começou há 20 anos tem beneficiado, em particular, mulheres após o parto e pessoas idosas que sempre usaram redes para descanso e convalescença. A adoção de redes começou de forma experimental em 1996. “O sucesso foi imediato e o projeto foi mantido até 2007, quando foi cancelado unilateralmente pelas autoridades de nível central na Cidade do México, que dormem em camas e desconheciam a cultura das redes no sudeste mexicano. No entanto, a partir de 22 de junho de 2017 foram reintegrados a partir da normativa nacional 777 do IMSS, na sua versão chamada “Prospera”, que indica mudanças nos estabelecimentos de saúde de acordo com os costumes locais e regionais. A modificação foi plenamente aceita pela comunidade, com grande repercussão nos meios de comunicação social locais e internacionais”, relata Navarro.
Imagem: Theodor Galle/ Domínio Público
O hospital rural de Hecelchakán atende uma população de origem maia, mas também residentes menonitas (anabaptistas de origem europeia) com assentamentos recentes na região e que, devido ao clima quente da península, estão aderindo ao uso de redes. A substituição das camas hospitalares é parcial: há uma seção de redes para mulheres, e outra para homens está sendo implementada. “A população local e regional recebeu o projeto com entusiasmo, inclusive manifesta orgulho por ser o único hospital em toda a da península que tem esse serviço”, afirma Navarro, que em 2015 publicou o livro Nadie nos puede arrebatar nuestro conocimiento (Ninguém pode tirar nosso conhecimento, 2015), que aborda a medicina tradicional indígena, suas origens, importância histórica, e principalmente os processos de legalização aos quais essas tradições foram submetidas até serem reconhecidas como alternativa médica no México e na Bolívia.