Hospitais quebrados são negócios de ocasião
Gilson Verani Freitas de Camargo
Um dos hospitais públicos mais requisitados do estado, a Santa Casa de Misericórdia de Rio Grande, RS, iniciou o atendimento neste ano com um novo modelo de atendimento. Mas a novidade não é uma boa notícia para os milhares de usuários do SUS na região. A nova diretriz da instituição vai mirar no lucro, já que a Santa Casa, fundada em 1835, a partir de 2016 mergulhou em uma crise que culminou no colapso financeiro. Com uma dívida acumulada de R$ 200 milhões, o hospital foi empurrado para um processo de privatização, em 2018, para escapar da falência
Longe de ser um caso isolado, o hospital riograndino é exemplar de uma lógica que operadores e especialistas alinhados com a defesa do SUS há muito tempo vêm denunciando: a apropriação do orçamento da saúde pela iniciativa privada e a mercantilização do setor em detrimento do sistema público e universal. Ao que tudo indica, o grande negócio para empresários do setor consiste em assumir dívidas e equipar hospitais públicos sucateados, transformando-os em lucrativas ilhas de excelência para quem tem dinheiro para pagar pelos serviços ou seja usuário de plano de saúde. Tudo isso, sem deixar de atender a saúde pública por meio de convênios firmados com os governos, que pagam para manter o caráter público do serviço. Claro que os investidores privados que disputam o orçamento da saúde contam com a ajuda do poder público, por meio do atraso ou corte sistemático no repasse de verbas para as prefeituras e hospitais, o que acaba empurrando essas instituições públicas para o endividamento e a falência. Na outra ponta do processo, a desarticulação da atenção básica nos municípios intensifica a “ambulancioterapia” e sobrecarrega os hospitais.
Foto: Igor Sperotto
A Organização Social Viva Mais, de Minas Gerais, que já administra 11 hospitais no país, anunciou em novembro de 2018 que estava assumindo a Santa Casa de Rio Grande por arrendamento. O diretor da empresa, Ruy Adriano Borges Muniz, explica que devido à falta de repasses mensais do governo do Rio Grande do Sul, a associação mineira assumiu o aporte de R$ 500 mil mensais ao hospital, além de colocar em dia a folha de pagamento que estava atrasada, totalizando mais de R$ 3 milhões. Até aí, nada além de uma iniciativa que merece até ser louvada por salvar uma instituição de saúde de excelência que atende à população de 22 municípios na região Sul do estado. A caridade exaltada nos 183 anos de história da Santa Casa, no entanto, parece não fazer sentido para a nova administração, a julgar pelo histórico do empresário que assumiu o controle da instituição.
Foto: Reprodução
O empresário Ruy Muniz tornou-se figura conhecida da Polícia Federal e do Judiciário mineiro justamente por seu envolvimento em negócios suspeitos na área da saúde. Em 2016, quando era prefeito de Montes Claros, foi alvo de um mandado de prisão preventiva pela Polícia Federal, na Operação Máscara da Sanidade II, como suspeito de prejudicar hospitais públicos da cidade para beneficiar um hospital privado de propriedade de sua família. Junto com a mulher, Raquel Muniz, foi condenado em dezembro de 2017 pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) por improbidade administrativa, com pena de multa, perda dos direitos políticos e proibição de contratar com o poder público. Em julho de 2018, o TRF-1 bloqueou bens do casal no valor de R$ 3 milhões.
No ano passado, o consórcio R+, liderado pelo empresário Ruy Muniz, arrematou em leilão, por R$ 259 milhões, o Hospital Evangélico e a Faculdade Evangélica, em Curitiba. Agora, a OS Viva Mais, dirigida por Muniz, passou a controlar a Santa Casa de Rio Grande sem assumir nenhuma dívida do hospital – somente a atualização dos repasses mensais ao governo – e ainda emplacou contratos públicos com o Estado, assinados no penúltimo mês de governo de José Ivo Sartori (PMDB), para atendimento de saúde de média e alta complexidade.
Beneficência Portuguesa: serviços cobrados e não prestados
Mais uma instituição que já foi referência em atendimento neurológico pelo SUS caiu, ainda que por tabela, nas mãos da iniciativa privada. Também em situação de falência, o Hospital Beneficência Portuguesa, de Porto Alegre, aparentemente não chega a ser um “negócio da China”, pois tem um passivo de R$ 9 milhões em serviços cobrados da prefeitura da capital e não realizados. Depois de nove meses fechada, a instituição foi reaberta no dia 28 de agosto sob a administração da Associação Beneficente São Miguel (ABSM), Organização da Sociedade Civil que administra o Hospital de Gramado. O contrato foi assinado em julho de 2018 e tem duração de cinco anos. Agora, sob a administração da iniciativa privada, o hospital não atende novos pacientes pelos SUS além daqueles previstos no contrato com o poder público. A prioridade são os usuários de 18 planos de saúde conveniados e os particulares, que respondem por 95 internações em 22 leitos. Os salários que estavam atrasados foram colocados em dia para 125 funcionários, alguns recém-contratados, mas 15 demitidos ainda aguardam uma decisão judicial para receber as verbas rescisórias.
O diretor da ABSM, Ricardo Pigatto, explica que gostaria de cumprir de forma integral o antigo contrato com a prefeitura de Porto Alegre para atendimento pelo SUS, que agora está limitado a 5,6 mil procedimentos mensais, totalizando cerca de R$ 190 mil, para pagar a dívida que tem com o sistema, de quase R$ 9 milhões por serviços cobrados e não realizados pela administração anterior do hospital.
Por enquanto, a Secretaria Municipal de Porto Alegre, contará com os serviços do Beneficência para reduzir a fila de espera para procedimentos simples, pequenas cirurgias de pele, vasectomias. Quem precisa se submeter a algum desses procedimentos é obrigado a esperar mais de um ano. A ampliação dos serviços para pacientes do SUS vai depender do cumprimento de metas de qualidade e quantidade dos atendimentos, fiscalizadas por uma comissão do Conselho Municipal de Saúde.
Estado deve R$ 1,1 bilhão a municípios e hospitais públicos
Foto: Igor Sperotto
O que vinha sendo apontado como “situação crítica da saúde” no estado só piorou desde o final do ano passado, com a desarticulação do programa Mais Médicos, que levou o Conselho de Secretários Municipais de Saúde do Rio Grande do Sul a alertar que o sistema está “à beira de um colapso”. A dívida da União ultrapassa R$ 1,1 bilhão, sendo R$ 600 milhões que deixaram de ser repassados às prefeituras e R$ 500 milhões devidos aos hospitais municipais.
De acordo com Diego Espíndola, presidente da entidade, cerca de 90 municípios continuam sem médicos desde a saída dos cubanos que atuavam no país pelo Mais Médicos, com o desmonte do programa a partir de novembro, e não há qualquer perspectiva de suprir essas vagas. A secretária estadual da Saúde, Arita Bergmann, chegou a anunciar que os repasses mensais voltariam a ser feitos a partir deste mês de março e que o pagamento da dívida acumulada depende de um financiamento, via Funacir, junto ao Banrisul. A secretária não atendeu aos pedidos de entrevista. Em fevereiro, funcionários do Hospital Getúlio Vargas, de Sapucaia do Sul, promoveram um dia de paralisação para protestar contra os atrasos de salários e do 13º. De acordo com o presidente do Sindisaúde Vale do Sinos, Andrei Rex, os salários são pagos com dois meses de atraso no HGV.
Iniciativa privada disputa orçamento da saúde
Foto: Igor Sperotto
O vice-presidente do Conselho Estadual de Saúde (CES/RS), Itamar Santos, alerta sobre o “risco de desmonte do SUS” por conta de uma disputa pelos recursos do setor, que vem se acirrando desde 1988, quando o SUS foi criado e as verbas de sustentação definidas. “Não se trata somente de problema de gestão e sim de concepção de saúde. A qual modelo o gestor aderiu? Ao da medicina preventiva, voltado para a atenção básica ou ao modelo chamado de indústria da doença, focado nos hospitais e laboratórios farmacêuticos?”, provoca. Para ele, a crise da saúde no estado é resultado dessa disputa que se dá em todo o país. “É um orçamento muito grande, cerca de R$ 130 bilhões em todo o país. A corporação médica e a indústria farmacêutica não querem abrir mão deste dinheiro”, aponta. No RS, o orçamento da saúde é de R$ 3,9 bilhões – ou 12% da receita líquida do estado de acordo com a Constituição.
Os preceitos constitucionais que definem a receita de sustentação do SUS, afirma, não estão sendo cumpridos. “Os municípios devem contribuir com 15% de sua receita líquida e privilegiar a atenção básica, ou seja, prevenção e identificação de doenças; os estados devem destinar 12% da arrecadação e fazer a manutenção das atenções secundária e terciária – serviços de média e alta complexidade, exames e internações hospitalares; e a União deve destinar 10% de sua receita para o restante. Essa verba deve ser gerenciada pelos fundos nacional, estaduais e municipais de Saúde e os gestores responsáveis devem ser o ministro, os secretários estaduais e municipais da Saúde. Isso, entretanto, não vem acontecendo”. O orçamento da saúde, afirma, não está no Fundo Estadual do setor, como determina a Constituição, mas no caixa único do governo. “Precisamos alterar a correlação de forças internas do governo para que o estado do RS cumpra a lei”, aponta. Santos lembra que no dia 13 de setembro de 2018 o CES/RS emitiu uma resolução rejeitando o orçamento da saúde do estado para 2019 devido a uma redução de R$ 3,9 bilhões para R$ 3 bilhões. Com o corte, o orçamento seria reduzido a 9,62% da receita líquida de impostos e transferências, abaixo do percentual de 12% determinados pela Constituição.
O conselheiro concorda com o presidente da Federação dos Empregados em Estabelecimentos de Serviços de Saúde do RS (Fessers), Milton Kempfer, que alerta para a estratégia do governo federal, com Temer e agora com Bolsonaro, de atender aos interesses do setor privado ao transferir recursos do setor público para a “Indústria da Doença”, segundo Kempfer, representada pelos hospitais, laboratórios e planos privados de saúde. “Sempre houve essa disputa por recursos, mas nunca com tanta força como agora”, observa o dirigente da Fessers. “O próprio esvaziamento do Mais Médicos indica uma concepção privatista para a saúde ao desmontar a atenção básica, a prevenção e as Estratégias de Saúde da Família”, acrescenta Santos.