Fiocruz lidera frentes de pesquisa de combate ao Covid-19
Foto: César Guerra Chevrand (COC/Fiocruz)
Não são poucas pessoas que ao ouvir falar de Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) associam imediatamente o nome à vacina e ao Rio de Janeiro. Poucos, na realidade, sabem que a instituição, que completa 120 anos no próximo mês de maio, é uma referência internacional em pesquisa no campo da saúde pública, presente fisicamente em todas as regiões do Brasil, e lidera no país os esforços mundiais contra o novo coronavírus. Isso tudo com os pesquisadores e cientistas enfrentando a caça às bruxas dos governos e cortes de verba.
No último dia 27, a presidente Nísia Trindade Lima anunciou a construção de uma unidade hospitalar de montagem rápida, que disponibilizará 200 leitos exclusivos de tratamento intensivo e semi-intensivo para pacientes graves da pandemia de coronavírus, que já matou 299 pessoas em menos de um mês e contaminou quase 6 mil no Brasil, segundo o Ministério da Saúde.
A iniciativa se somará às ações do ensaio clínico Solidarity (Solidariedade) da Organização Mundial da Saúde (OMS) lançado uma semana antes, no dia 20. No novo hospital da Fiocruz será investigada profundamente a eficácia de quatro tratamentos para a Covid-19.
O estudo será coordenado pelo Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI) que é vinculado à Fiocruz e implementado em 18 hospitais de 12 estados.
Para isto, a fundação contará com o apoio do Departamento de Ciência e Tecnologia do Ministério da Saúde. O Solidarity é um esforço concentrado da OMS para rapidamente buscar descobrir quais medicamentos são eficazes no tratamento da Covid-19 e quais são ineficazes e não devem ser utilizados.
A construção do centro hospitalar se dará em duas etapas para agilizar a sua operação no curto prazo. Com um canteiro de obras que já está funcionando 24 horas por dia, um primeiro módulo está previsto para ser concluído em 40 dias. Serão 100 leitos (50 para tratamento intensivo e 50 para semi-intensivo). A Fiocruz espera que no final de dois meses todo o centro esteja completo e os 200 leitos totalmente disponíveis.
Salvar vidas e proteger o SUS
Foto: Divulgação Fiocruz
Segundo a presidente da Fiocruz, o objetivo é minorar ao máximo os efeitos da pandemia. “Estamos trabalhando em todas as frentes do combate ao novo coronavírus e nossos dois institutos, de produção de vacinas e medicamentos, participam ativamente desse esforço”.
Nísia ainda diz que “o momento é crítico em relação à pandemia de Covid-19” e elenca dois objetivos cruciais: “salvar vidas, tendo em vista o aumento do número de casos, e proteger o SUS”.
Ela entende que, além do novo coronavírus, outras enfermidades vão representar problemas graves para o sistema público de saúde. A presidente ressalta que as imensas desigualdades sociais do Brasil, “um país continental”, com pessoas residindo em locais de grande aglomeração e densidade demográfica contribui para isto.
Já para a diretora do INI/Fiocruz, Valdiléa Veloso, a construção do novo centro hospitalar recorda a inauguração do Instituto. O INI foi instituído em 1918, época da gripe espanhola que matou milhões de pessoas no mundo. “Agora damos mais este passo, para fazer frente a este grande desafio que é de toda a Humanidade” enfatiza.
Peste bubônica, gripe espanhola, febre amarela, malária
A história da Fiocruz é uma história de dedicação ao enfrentamento de emergências sanitárias e de infectologia. Ela começou em 25 de maio de 1900 sob o batismo de Instituto Soroterápico Federal que foi criado especialmente para a produção de vacinas e soros contra a peste bubônica.
Durante sua evolução, até chegar a gigantesca estrutura de hoje, a instituição passou por várias fases. Todas, no entanto, pautadas por altos e baixos cujo tom eram casos de emergência na saúde pública brasileira. Foi o caso da peste bubônica no início do século 20 e da gripe espanhola, em 1918.
A instituição, com a Revolução de 1930, foi golpeada com a perda de uma importante patente. Inconformado com a ideia de centralização de recursos no Tesouro Nacional, um dos desenvolvedores de uma vacina destinada a uma peste bovina (peste da Manqueira) não renovou o acordo verbal com Oswaldo Cruz e a Fundação sentiu o golpe. Essa vacina, fala Carlos Fidelis Ponte, “salvou o rebanho nacional e de muitos países da América Latina”.
Pontes é pesquisador do Observatório História e Saúde do Departamento de Pesquisa em História, Ciência e Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) e coordenou diversos projetos sobre a história da fundação. Integra a diretoria da Associação dos Funcionários da Fundação Oswaldo Cruz (Asfoc).
Ele relata que o baque com a perda das verbas naquele período não foi tão drástico porque logo houve os esforços da segunda guerra mundial. Como os aliados precisavam de borracha, extraídos nos seringais do Brasil, a instituição foi acionada para a produção de vacinas contra a malária e febre amarela.
Epidemia de meningite e caça às bruxas
Foto: Divulgação Fiocruz
Outras situações acabaram evidenciado o papel da Fundação Oswaldo Cruz como uma espécie de bombeiro nas
situações de emergência da saúde pública nacional. Mas, ironicamente, essas situações ajudaram na manutenção da fundação e na sua consolidação como referência na pesquisa internacional.
Na metade da década de 1970, quando a organização estava em uma franca decadência, fortes recursos foram destinados para o combate a epidemia da meningite com o general Ernesto Geisel na presidência da República. “O Brasil constatou que não tinha vacina e nem fornecedor internacional para atender a sua população”, fala Ponte.
Curiosamente, o ditador de plantão desfez parte do mal que outro general na cadeira da presidência inoculou na Fiocruz. Mal que acabou sendo registrado na história interna da fundação como o Massacre de Manguinhos: a demissão de 10 importantes cientistas em 1970 no governo Medici.
“Ninguém queria ir trabalhar lá (na fundação)”, registra Ponte. Com o “clima de caça as bruxas”, continua, a Fiocruz “não recrutava mais a nata”. O temor não era para menos. Os 10 cientistas caçados tiveram seus laboratórios e equipes desarticuladas, proibidos de entrar na Fiocruz e proibidos de serem contratados por qualquer outro órgão governamental.
O certo é que, a partir da epidemia de meningite, a Fiocruz decidiu que “não vamos só ficar importando vacina; vamos importar transferência de tecnologia”, lembra o historiador.
É um procedimento que a instituição usa até hoje. Como tem uma boa base científica, a Fiocruz, inclusive, tem melhorado insumos que compra. Um exemplo é a vacina contra a poliomielite. “A Fiocruz descobriu que em algumas áreas do Brasil ela não era tão eficaz e a aprimorou”, lembra Ponte. O feito foi reconhecido internacionalmente e a nova vacina da Oswaldo Cruz foi recomendada pela Organização Panamericana da Saúde.
As tentativas de ingerência do governo Temer
Assim, de emergência em emergência a Fiocruz vem até hoje. Em 1987, a fundação isolou o vírus HIV no Brasil em uma época onde a Aids ceifava milhares de vítimas.
Um período, no entanto, foi de forte apreensão. Ricardo Barros, ministro da Saúde de Michel Temer defendia que a Fiocruz ficasse apenas na pesquisa e não na fabricação de medicamentos. Na lógica de Barros, caberia essa produção à iniciativa privada. “Uma sandice”, na opinião de Ponte que advoga que desenvolvimento tecnológico e pesquisa científica tem que andar juntos.
Outra emergência de Saúde, no entanto, jogou água fria nos intentos do então ministro. As epidemias da zica, dengue e chicungunha, acabaram com a ameaça os laboratórios da Fiocruz.
Para o presidente da Associação dos Funcionários da Fundação Oswaldo Cruz (Asfoc), Paulo Garrido, Ricardo Barros foi na atualidade o pior ministro da Saúde do Brasil. O dirigente lembra que o Sindicato teve que reagir fortemente para que Barros nomeasse o primeiro nome da lista tríplice para garantir a posse da atual presidente da Fiocruz.
A ameaça do teto dos gastos
Foto: Divulgação Fiocruz
Se as tentativas de ingerência do ministro da Saúde na Fundação não surtiram maiores efeito, a Emenda Constitucional 95, que limita por 20 anos os gastos públicos no momento é a maior ameaça.
Além de obrigar a Fiocruz a manter um patamar de investimento que não segue a lógica da indústria da saúde, onde muitos insumos seguem a variação cambial, a fundação vê a saída de profissionais que se aposentam sem a devida reposição.
O presidente da Asfoc Paulo Garrido afirma que, no meio da pandemia Covid-19, o Sindicato continua lutando para a convocação imediata de profissionais que foram considerados excedentes no último concurso realizado pela Fiocruz.
São pesquisadores, especialistas, assistentes técnicos e assistentes em saúde pública que ajudariam no combate a enfermidade e dariam mais fôlego à Fiocruz. Segundo o dirigente sindical, o atual corpo de servidores “apesar de dar seguidas respostas de excelência ao Estado e à sociedade brasileira, está muito abaixo do número ideal de trabalhadores”.
Garrido entende que a EC 95 não só atrapalha a Fiocruz ao impor cortes de orçamento para a realização de novos concursos e adequação de pessoal. Ele afirma que é necessário de forma urgente a revogação da chamada lei do teto e a “rediscussão do papel estratégico de todo o sistema de saúde público”.
O presidente da Asfoc revela que sua entidade, ao lado do Centro de Estudos de Saúde Brasileiro, está com a missão de desenvolver uma pesquisa para medir os impactos da EC 95, da reforma trabalhista e da reforma da Previdência sobre os trabalhadores da saúde. Com assento nas comissões intersetoriais do Conselho Nacional de Saúde, Garrido diz já ter conhecimento de profissionais da atenção básica que estão se suicidando por falta de condições de trabalho. “Se isto impacta os trabalhadores da saúde, imagina os demais”, assevera.
Sobre a saúde pública no Brasil, uma coisa é certa para todos na Fiocruz. Da diretoria, aos trabalhadores, a unanimidade é o entendimento de que o estado não se prepara adequadamente para as emergências como a Covid-19.
O alerta está dado e cada vez mais especialistas são categóricos em afirmar que pandemias no mundo globalizado vão ser comuns.