Pandemia evidencia desigualdade e dificuldade de acesso à saúde nos Estados Unidos
Foto: Reprodução Youtube/The Guardian
A ausência de um serviço público de saúde está deixando cada vez mais claro uma grande fragilidade dos Estados Unidos. Novo epicentro da Covid-19, o país do Tio Sam tem um modelo de saúde onde quem pode pagar é atendido e quem não pode fica à míngua.
Para o pesquisador Carlos Henrique Assunção Paiva, da Fundação Instituto Oswaldo Cruz (Fiocruz), nos Estados Unidos “a oferta do serviço de saúde não está calcado no direito de cidadania, como no Brasil, por isso é uma relação de mercado”. E esse mercado é um dos maiores causadores da “bancarrota” das famílias americanas. “Dizer que existe um sistema de saúde pública nos Estados Unidos é um erro”, afirma.
“Negros e hispânicos na sociedade americana vivem em condições de trabalho e vulnerabilidade tão parecida ou até piores do que a de trabalhadores brasileiros, afirma o pesquisador”, observa Paiva.
As estatísticas recentes mostram que ser negro ou hispânico em Nova Iorque já é um indicador de risco. Por integrar as camadas mais pobres, essas comunidades da cidade que registra o maior número de vitimados pelo novo coronavírus, têm duas vezes mais chances de morrer do que brancos. Para o prefeito da maior cidade americana, Bill de Blasio, essa disparidade reflete a desigualdade econômica e as diferenças no acesso aos cuidados de saúde no país.
Andrew Mark Cuomo, governador do estado de Nova Iorque, disse que os números podem ser parcialmente atribuídas a grupos que têm mais problemas crônicos de saúde não tratados do que outros o que aumenta a probabilidade de morte pelo vírus.
Para Paiva, doutor em Saúde Pública pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e estudioso dos sistemas de saúde do mundo, de fato não existe nenhuma razão biológica que indique que negros e hispânicos são mais suscetíveis à letalidade da Covid-19.
Sistema público de saúde
“O conceito sugere uma engenharia institucional, uma articulação entre instituições de saúde para atuar em sintonia nos diferentes níveis”, observa Paiva. O pesquisador entende que os Estados Unidos não têm isso para o bem de sua população. “Em qualquer lugar do mundo tem que ter essa racionalidade: porta de entrada, fluxo de usuários e acesso aos níveis mais complexos, como cirurgias, transplantes”, elenca.
Nos Estados Unidos a lógica é “quem pode pagar, tem acesso”, registra o pesquisador. Ele, no entanto, lembra que nas últimas décadas foram criados seguros para os mais pobres e idosos acima dos 65 anos. Isso, com o subsídio do governo americano, fez com que as operadoras privadas de planos de saúde crescessem ainda mais.
Sociedade é refém de lobbies
Outra barreira de acesso aos serviços de saúde nos Estados Unidos é que as operadoras majoritariamente trabalham com o sistema de co-pagamento, sistema que já começa a ser adotado em algumas operadoras no Brasil. O usuário tem que pagar por parte do serviço utilizado.
Isso, corrobora a opinião do governador Cuomo, o da existência de problemas crônicos de saúde não tratados. “Esta faltando grana, vai segurar. E quando vai buscar tratamento já vai com a saúde comprometida”, explica Paiva.
O certo é que tratamentos de saúde, registra o professor, são os principais motivos para a “bancarrota das famílias americanas”, que, sem uma assistência pública hipotecam suas residências para custear a assistência.
O motivo se dá muito basicamente porque lobbies do sistema hospitalar e das operadoras de planos de saúde americanos criaram um ambiente político, institucional e ideológico desfavorável a criação de um sistema público no país.
Essas grandes empresas, que financiam boa parte das campanhas de candidatos ao legislativo dos Estados Unidos, conseguiram “criar uma caricatura que soa mal na cultura liberal americana”. De acordo com Paiva, a partir das décadas de 1950 e 1960, a ideia de oferta de saúde pelo Estado foi vendida como um conceito socialista e comunista.
Vozes que se insurgem
O pesquisador, no entanto, ressalva que para ser justo é necessário lembrar que os Estados Unidos foram os protagonistas da discussão que hoje é muito utilizada nos sistemas universais de saúde pública no mundo.
Entre os anos de 1930 e 1940, o conceito de criação de territórios para racionalizar a oferta de atendimentos de saúde como hospitais polos é um dos exemplos.
No entanto, a inflexão nos anos pós-segunda guerra fez com que os Estados Unidos sejam hoje, das grande economias, o único que não tenha um sistema universal de saúde pública.
Evidentemente existem vozes contrárias dentro do país. Bernie Sanders, que renunciou na última terça-feira, 8, a vaga pelo partido Democrata para disputar as próximas eleições presidenciais, é uma.
O documentarista Michael Moore é outra e, para estimular o debate, lançou em 2007 o documentário SiCKO, que compara o sistema de saúde americano com os sistemas de saúde universais de países como Canadá, Cuba, França e Inglaterra.
“Em uma sociedade em ebulição como a americana, não há dúvidas que esse tema faz parte da agenda das lutas sociais”, observa Paiva. Para ele, certamente esse tipo de debate não avança com Donald Trump na presidência.
Por outro lado, a Covid-19 está sendo tão trágica que “talvez isso faça com que o país enfrente a discussão sobre a importância de um sistema universal”, conclui.
Covid-19 avança
Todos os indicadores apontam para o fato de que em breve o país mais rico do mundo possa ultrapassar a Itália, líder no ranking de óbitos causados pela enfermidade, com mais de 18 mil falecidos.
Na quarta-feira, 9, os Estados Unidos ultrapassaram a Espanha, até então na segunda posição. Agora são mais de 17 mil óbitos em solo americano contra cerca de 15 mil na Espanha.
Nova Iorque é o estado com o maior número de contaminações e mortes no país. O último dado oficial aponta 1/3 de casos. A cidade de Nova York é a depositária do maior número de infectados, mais de 80 mil, sendo desses, 5.150 mortos segundo registrou nessa sexta-feira, 10, o Johns Hopkins Coronavirus Resource Center.