SAÚDE

Portadores de HIV/Aids estão mais expostos à Covid-19

Pesquisa do Unaids revela falta de assistência social e de saúde, dificuldades de acesso a medicamentos e a insumos de proteção pessoal e higiene
Por Gilson Camargo / Publicado em 11 de maio de 2020
Representantes dos grupos de apoio em Porto Alegre alertam sobre falta de medicamentos e alimentos enfrentadas por portadores de HIV/Aids

Foto: Flávio Dutra/ Gapa/ Igualdade RS/ Divulgação

Representantes dos grupos de apoio em Porto Alegre alertam sobre falta de medicamentos e alimentos enfrentadas por portadores de HIV/Aids

Foto: Flávio Dutra/ Gapa/ Igualdade RS/ Divulgação

Pesquisa realizada pelo Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (Unaids) Brasil com quase 3 mil pessoas que vivem com HIV ou Aids no país aponta que 42,9% esperam apoio das instituições de governo e de organizações não governamentais para a provisão de serviços de assistência social, incluindo alimentação.

Em outro estudo, um grupo de pesquisadores convocados pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e Unaids alerta que se não forem feitos esforços para mitigar e superar as interrupções nos serviços e na distribuição de insumos de saúde causados pela pandemia de Covid-19, uma interrupção de seis meses da terapia antirretroviral poderia levar a um número superior a 500 mil mortes a mais por doenças relacionadas à Aids, incluindo tuberculose, em todo o mundo.

O Brasil conseguiu evitar 2,5 mil mortes por Aids entre os anos de 2014 e 2018. Nos últimos cinco anos, o número de mortes pela doença caiu 22,8%, de 12,5 mil em 2014 para 10,9 mil em 2018. A partir daí, com a precarização das redes de apoio e o abandono das políticas públicas, as estatísticas voltaram a crescer.

O levantamento mais recente do Ministério da Saúde estima que 900 mil pessoas vivem com HIV/Aids no país, 766 mil foram diagnosticadas, 594 mil fazem tratamento com antirretroviral, 554 mil não transmitem – e outras 135 mil pessoas são portadoras do vírus e não sabem. Em todo o país, o desabastecimento ocasional de alguns antirretrovirais se transformou em um problema crônico para pacientes em tratamento.

“É preocupante saber que muitas pessoas, por falta de água, de sabão, de moradia e outros insumos de higiene e proteção, estão mais expostas e mais vulneráveis ao novo coronavírus”

Em Porto Alegre, remédios como a lamivudina são muito difíceis de serem encontrados nas farmácias de referência como o Posto IAPI, Santa Marta, Vila dos Comerciários e do Hospital de Clínicas. Nas periferias, a interrupção do tratamento se soma à miséria e à fome. O Grupo de Apoio à Prevenção à Aids (Gapa/RS) e a organização comunitária Associação de Travestis e Transexuais do Rio Grande do Sul (Igualdade/RS) criaram a campanha Solidariedade em ação. A iniciativa de auxílio emergencial para travestis e transexuais que já enfrentavam inúmeras dificuldades no seu cotidiano e estão com esta situação agravada com a pandemia já arrecadou toneladas de alimentos.

Abandono, medo e preconceito

Em Porto Alegre, ação solidária do Gapa e Igualdade/RS arrecadou alimentos e insumos para portadores de HIV/Aids e grupos vulneráveis devido à Covid-19

Foto: Flávio Dutra/ Gapa/ Igualdade RS/ Divulgação

Em Porto Alegre, ação solidária do Gapa e Igualdade/RS arrecadou alimentos e insumos para portadores de HIV e grupos vulneráveis devido à Covid-19

Foto: Flávio Dutra/ Gapa/ Igualdade RS/ Divulgação

O levantamento on-line feito pelo escritório do Unaids Brasil entre os dias 27 e 31 de março deste ano aponta que o comprometimento dos serviços de saúde pela pandemia de Covid-19 representa o abandono e um maior risco de contágio pelo novo coronavírus para os grupos portadores de HIV/Aids.

Sem acesso a infectologistas e a medicamentos, sofrem privações como a falta de acesso aos medicamentos da terapia antirretroviral, não dispõem de infraestrutura ou insumos para a proteção do ambiente doméstico ou pessoal e muitos não tem sequer acesso a água potável ou produtos de higiene. Para uma parcela de pessoas que vivem com HIV/Aids, o isolamento social não é viável, as informações sobre a pandemia são escassas e toda a energia que resta é concentrada em uma única meta: manter-se vivo.

Quase metade dos entrevistados (46%) considera que as informações sobre a relação entre a Covid-19 e o HIV são insuficientes e cerca de 13% afirmaram que não conseguem permanecer em isolamento. Desses, 48,6% afirmaram que precisam sair para trabalhar e não têm a opção de ficar em casa e mais de um terço (34,7%), porque têm medo de revelar que vivem com HIV – em um país dominado por fanáticos religiosos e homicidas em potencial empoderados pela narrativa bolsonarista de apologia à violência e à morte.

Também chama atenção o fato de 17% das pessoas não terem equipamentos e insumos de proteção pessoal e doméstica suficientes, incluindo água (6,2%) e sabão (7,6%), indicadores de extrema vulnerabilidade. Estes números foram puxados pela população que se identificou com raça/cor preta: 5,3% disseram não ter acesso a água – 2,6 vezes mais do que entre respondentes brancos – e 7,3% disseram não ter acesso a sabão – quatro vezes maior que entre brancos.

Arte: Unaids

Arte: Unaids

“Os resultados deste questionário nos ajudaram a enxergar quais as principais demandas e carências entre as pessoas vivendo com HIV e com Aids, num momento delicado como este de pandemia da Covid-19”, explica Cleiton Euzébio de Lima, diretor interino do Unaids no Brasil. “Já sabíamos que, no Brasil, a epidemia do HIV tem afetado desproporcionalmente alguns grupos populacionais mais vulneráveis, principalmente as populações-chave”, revela.

Segundo Lima, nesse momento da pandemia de Covid-19, a principal preocupação do Unaids é dar visibilidade ao fato de que, apesar de todas as pessoas estarem suscetíveis à infecção pelo novo coronavírus, a pandemia terá um impacto diferenciado em cada população ou comunidade. “É preocupante saber que muitas pessoas, por falta de água, de sabão, de moradia e outros insumos de higiene e proteção, estão mais expostas e mais vulneráveis ao novo coronavírus”, alerta.

A Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV e AIDS (RNP+) e o Movimento Nacional das Cidadãs Posithivas (MNCP) apoiaram o Unaids na revisão do questionário e na divulgação entre seus membros. A pesquisa se inspirou em uma iniciativa do Unaids na China, o primeiro epicentro da pandemia de Covid-19, e foi adaptada para o contexto brasileiro, incluindo também questões relevantes, como a situação da saúde mental dos pesquisados.

“Descobri que estou com o vírus no meio da pandemia
e não tem infectologistas disponíveis para me atender”

No Brasil, o levantamento mobilizou 2.893 respostas, sendo que 82,6% delas vieram de pessoas pertencentes à populações-chave: gays e outros homens que fazem sexo com homens (79,6%), pessoas trans (2,1%), trabalhadores do sexo (0,6%) e pessoas que usam drogas (0,4%).

Dentre o total de pessoas pesquisadas, 51,3% são negros (36,2% se declararam pardos e 15,1% pretos), sendo 45,5% brancos. A maioria (64%) têm entre 20 e 34 anos e quase 10% está acima dos 50 anos. Ainda sobre o perfil das pessoas respondentes, pouco mais da metade (52%) vive no Sudeste e quase um quarto (23%) na região Nordeste; as demais vivem no Sul (11%), Centro-Oeste (8%) e Norte (6%).

Acesso ao tratamento e outros serviços de saúde relacionados ao HIV

Arte: Unaids

Arte: Unaids

A maioria dos entrevistados declarou estar atualmente em tratamento antirretroviral (96%). Dentre os 4% restantes, chamam a atenção diversos relatos de pessoas que tiveram suas consultas ou exames necessários para iniciar seu tratamento cancelados. “Estava para iniciar meu tratamento, com consulta marcada com o infectologista para examinar meus exames, e a consulta simplesmente foi cancelada sem aviso prévio, isso me deixou muito triste”, informou no questionário um dos pesquisados, morador de São Paulo.

“Descobri que estou com o vírus no meio da pandemia e não tem infectologistas disponíveis para me atender. Queria começar o tratamento logo”, relatou um morador de Uberlândia.

Apesar de representar um percentual pequeno, são situações críticas que devem receber atenção dos gestores locais de saúde. “Sabemos que em muitas localidades, os serviços de saúde e seus profissionais estão completamente sobrecarregados com as demandas relacionadas à nova pandemia”, reconhece Lima. “Entretanto, o Unaids reforça a importância de que, nesse caso específico das pessoas vivendo com HIV ou AIDS que estão para iniciar o tratamento com antirretrovirais, as consultas e exames sejam considerados como parte dos serviços essenciais de saúde. Essas pessoas não podem esperar para iniciar o tratamento, pois isso pode, inclusive, colocar sua saúde e sua vida em risco”, ressalta.

Arte: Unaids

Arte: Unaids

O Unaids reforça a importância de que, nesse caso específico das pessoas vivendo com HIV ou AIDS que estão para iniciar o tratamento com antirretrovirais, as consultas e exames sejam considerados como parte dos serviços essenciais de saúde.

Os pesquisadores perguntaram se as pessoas entrevistadas tinham visitado o serviço de saúde local para reabastecer o estoque pessoal de medicamentos para HIV nos 30 dias anteriores à data da pesquisa (27 a 31 de março), e 64% confirmaram que sim. Destes, 28% responderam ter tratamento suficiente para três meses. Outros 32,3% disseram ter tratamento para dois meses, e 39% para apenas um mês.

De acordo com a recomendação do Unaids e do Ministério da Saúde, os serviços devem, na medida do possível, disponibilizar tratamento para pelo menos três meses durante a pandemia. Isso evitará a exposição desnecessária dessas pessoas indo buscar medicamentos repetidas vezes durante a pandemia em serviços de saúde que estão já sobrecarregados

Saúde mental e outras demandas

Arte: Unaids

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Entre as pessoas vivendo com HIV e vivendo com AIDS que responderam à pesquisa, 66,7% disseram ter sentido alterações em seu humor ou em seus comportamentos e hábitos devido à pandemia de Covid-19. Foram feitas perguntas que simularam situações cotidianas, em que os parâmetros que estavam sendo avaliados foram adaptados do Manual Diagnóstico Estatístico de Transtornos Mentais (DSM 5), e a quantidade de perguntas que as pessoas respondiam resultou em uma soma que possibilitou um indicativo de necessidade de auxílio médico psiquiátrico, ou acompanhamento psicológico.

A soma das respostas deu origem a indicativos de sintomatologia leve (44%), moderada (18%) e grave (2%) – sendo que 36% dos resultados foram classificados como inválidos ou não informados.

Entre as 572 pessoas que responderam à pergunta sobre se acreditavam necessitar de apoio psicológico para lidar com a ansiedade gerada pela pandemia de Covid-19, praticamente metade delas (50,4%) responderam afirmativamente.

Acesso a informações, fake news e os impactos da pandemia

Arte: Unaids

Arte: Unaids

Considerando que informação é um elemento fundamental para a prevenção em contextos de pandemia, o questionário buscou avaliar quais são as principais fontes de informação sobre Covid-19 para as pessoas vivendo com HIV ou AIDS. A televisão é a fonte de informação para 40%, enquanto 24% disseram se informar por sites e redes do Ministério da Saúde, 11% via serviços e profissionais de saúde, 7% pelo Whatsapp e 6% por intermédio de amigos e familiares.

Entre os 46% dos que declararam ter informações insuficientes, chama atenção o fato de 58% serem negros (32% pardos e 26% pretos), ante 39% de pessoas brancas – um indicativo de que o acesso a informações neste contexto também sofre o impacto do racismo estrutural que afeta, entre outros fatores, diversos aspectos da saúde de pessoas negras no Brasil.

A pesquisa também perguntou que tipo de informações as pessoas gostariam de receber com mais frequência. Mais de 60% delas responderam “dicas e cuidados específicos para pessoas vivendo com HIV e AIDS.”

“O Unaids tem se preocupado com o crescimento do fenômeno das fake news que podem minar os esforços de saúde e aumentar o estigma e a discriminação. Como é uma pandemia muito nova, ainda não há informações conclusivas sobre impactos diferenciados da Covid-19 em pessoas vivendo com HIV. Seguramente, à medida em que ela impacte países com maior prevalência do HIV, será possível ter mais informações sobre essa correlação”, explica o diretor interino do Unaids no Brasil. “Mesmo assim, temos nos esforçado para traduzir materiais produzidos em outros idiomas, repercutir informações oficiais da OMS e mobilizar parceiros e influenciadores para que levem estas informações ao maior número possível de pessoas”, explica Lima.

Arte: Unaids

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O levantamento também apontou que a maioria das pessoas vivendo com HIV ou AIDS está ficando em casa como forma de se proteger do novo coronavírus. Entretanto, 13% declararam que não adotaram o distanciamento social. Trabalhadores e trabalhadoras do sexo, por exemplo, estão entre as populações-chave com maior dificuldade de cumprir esta recomendação e entre as mais carentes de insumos básicos de higiene e limpeza. No momento da pesquisa, 5,9% não tinham acesso a água – duas vezes mais que entre gays e HSH; 58,8% delas não tinham acesso a álcool em gel – cinco vezes mais na comparação com gays e HSH; e 23,5% não tinham acesso a sabão – sete vezes na mesma comparação.

“Dados compilados do Índice de Estigma Brasil 2019, divulgado no ano passado, já mostravam que muitas pessoas vivendo com HIV e vivendo com AIDS estavam em situação de pobreza. A pandemia de Covid-19 acabou tornando este quadro ainda mais grave”, relembra Lima. “Assim, a resposta à pandemia deve incluir estratégias que respondam às necessidades diferenciadas de cada grupo, especialmente os mais vulneráveis.”

ESTATÍSTICAS GLOBAIS SOBRE HIV

  • O último levantamento estatístico da Unaids sobre portadores de HIV/Aids em terapia é de 2019. Até junho daquele ano, a média de pessoas com acesso à terapia com antirretrovirais era de 24,5 milhões – entre 21,6 milhões e 25,5 milhões pessoas.
  • Em todo o mundo, entre 32,7 milhões e 44 milhões de pessoas vivem com HIV. A média é 37,9 milhões.
  • Até o final de 2018, entre 1,4 milhão e 2,3 milhões de pessoas foram infectadas, média de 1,7 milhão
  • Desde o início da epidemia, entre 58,3 milhões a 98,1 milhões foram infectados pelo HIV
  • Entre 570 mil e 1,1 milhão de pessoas morreram de doenças relacionadas à Aids até 2018 – e 32 milhões desde o início da epidemia

Fonte: Unaids

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