SAÚDE

Se não controlar a curva de contágio, muitos morrerão, alerta epidemiologista

Por Gilson Camargo / Publicado em 23 de junho de 2020

A disputa que se estabeleceu entre gestores públicos e ciência em relação ao enfrentamento da pandemia do novo coronavírus pode resultar em um alto custo em vidas pelo colapso do sistema de saúde – devido à proliferação do contágio que representa a retomada precoce das atividades econômicas e da circulação de pessoas. Como num jogo de espelhos, a previsão de pico da curva de contágio vai se deslocando no tempo como resposta a um maior ou menor grau de distanciamento social. “Enquanto a nossa curva estiver controlada e os novos casos tiverem espaço no sistema de saúde, a gente pode continuar prestando esse cuidado de excelência para os pacientes”, alerta Jeruza Neyeloff, epidemiologista do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) – uma das instituições de referência em saúde pública no estado. “Se perdermos o controle da curva e não tivermos mais espaço em enfermarias, em CTI para esses pacientes, a mortalidade dessa doença pode aumentar muito. E a gente vai perder vidas que nós não deveríamos perder”. Com uma média de 50 pacientes em UTI desde o primeiro diagnóstico no hospital por Covid-19, em 14 de março, o Clínicas já teve picos de atendimento, com 400 pacientes na emergência e mais de 250 hospitalizados – é uma das instituições públicas com maior capacidade de testagem para pacientes internados com suspeita de Covid-19. “O esforço de atendimento da pandemia é sempre muito maior que a atenção aos casos confirmados”, avalia nesta entrevista.

Extra Classe – Enquanto aumenta a pressão pela retomada da atividade econômica está ocorrendo uma progressão de casos de Covid-19 e mortes em todo o país. No estado, o governo apontou aumento de contágio e menor disponibilidade hospitalar de atendimento. Como está a situação no Clínicas no momento? Há um aumento na demanda?
Jeruza Neyeloff – Nas últimas duas semanas temos visto aumento da procura da emergência por casos suspeitos, mas principalmente aumento de lotação da nossa CTI. Passamos de um patamar de cerca de 20 leitos ocupados para 40, 42 pacientes em leito de CTI. São pacientes complexos, que exigem muitos cuidados, e as equipes estão com alta demanda de trabalho. Na sexta-feira, 19 de junho, dos 41 pacientes na área CTI Covid, 35 estavam em ventilação mecânica. E o esforço de trabalho vai muito além dos casos confirmados; um paciente suspeito tem que ser testado, às vezes retestado, e mesmo que seja descartado como caso de contágio ainda precisa de atendimento hospitalar. Já passaram pela CTI Covid mais de 240 pacientes, mais de 540 já passaram pela enfermaria, e mais de 940 pacientes já foram avaliados na emergência.

“A principal mudança no Hospital é ter fluxos dedicados para o atendimento de suspeitas de coronavírus. Para segurança dos profissionais e de todos os pacientes, tentamos sempre paralelizar, separar o atendimento dos suspeitos confirmados dos demais pacientes”

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“A principal mudança no Hospital é ter fluxos dedicados para o atendimento de suspeitas de coronavírus. Para segurança dos profissionais e de todos os pacientes, tentamos sempre paralelizar, separar o atendimento dos suspeitos confirmados dos demais pacientes”

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EC – Como a pandemia alterou a rotina do hospital nesse momento de revisão dos protocolos de isolamento – pelo menos quatro cidades gaúchas estão em bandeira vermelha?
Jeruza – É uma realidade completamente diferente, que mobiliza toda a instituição para responder ao que a sociedade precisa neste momento, que é o atendimento dedicado à Covid-19. Reduzimos muito os atendimentos ambulatoriais não essenciais para diminuir a circulação de pessoas tanto nas dependências do hospital quanto na cidade. Claro, mantemos todo o atendimento de casos oncológicos já em tratamento, cirurgias urgentes, pacientes instáveis, emergências. Agora, com mais de três meses de pandemia, estamos trabalhando com teleconsultas, monitorando os pacientes para que eles não fiquem desassistidos. Mas a principal mudança na instituição é ter fluxos dedicados para o atendimento de suspeitas de coronavírus. Para segurança dos profissionais e de todos os pacientes, tentamos sempre paralelizar, separar o atendimento dos suspeitos confirmados dos demais pacientes. Então, o paciente chega na emergência com suspeita, ele tem uma síndrome gripal, tosse, está com resfriado, vai direto para o fluxo de atendimento num local físico separado, com profissionais dedicados para esse atendimento. O mesmo vale para a enfermaria e para a CTI. Também no Serviço de Medicina Ocupacional temos áreas separadas de atendimento. Temos uma política de uso de EPIs bem detalhada, os profissionais que atendem casos suspeitos ou confirmados de Covid-19 usam paramentação específica. Há fluxos específicos para uso de elevadores, para transporte, para exames. São muitas medidas implementadas, pensando na segurança dos profissionais e dos pacientes.

EC – Como está o quadro de contágio de profissionais da saúde na instituição?
Jeruza – Temos casos confirmados entre os profissionais, mas há uma grande sobreposição entre exposição ocupacional aqui dentro e exposição comunitária, porque os nossos profissionais também podem se contaminar lá fora. Até o momento, tivemos 158 profissionais com teste positivo, entre os mais de 1,5 mil profissionais testados. Nosso Serviço de Medicina Ocupacional (SMO)  e Comissão de Infecção Hospitalar têm feito um trabalho exemplar no atendimento, testagem e acompanhamento dos casos. Já foram mais de 2,8 mil atendimentos e 2,6 mil coletas. Nossa política é de vigilância de sintomas, testagem e afastamento precoce, e o profissional só volta à ativa depois de liberado pelo SMO. E aqui é importante destacar que não cabe uma comparação do total de pacientes com teste positivo para coronavírus com o número de profissionais infectados, porque os critérios para testagem são diferentes. Pela política de saúde pública do estado, o paciente que testa no HCPA é o que tem critérios para ser internado. O HCPA é um dos que mais tem capacidade de testagem no momento, mas somente testamos pacientes com suspeita que têm indicação de atendimento hospitalar. Casos de sintomas leves não devem procurar o hospital, e aquele paciente que tem sintoma gripal, mas vai pra casa, recebe recomendação de isolamento. Para o profissional de saúde, como medida de segurança para os pacientes inclusive, com qualquer sintoma a gente imediatamente afasta esse funcionário e testa. E ele só volta ao trabalho depois do teste confirmado negativo e de ele estar assintomático.

EC – Na sua avaliação, a testagem em massa da população é eficaz? Por quê?
Jeruza – Como epidemiologista eu acho importante esclarecer para a população que quando se fala em testagem em massa, talvez as pessoas imaginem ‘vamos testar todo mundo e todo mundo que der negativo pode trabalhar, não precisa mais se isolar’. Eu empatizo muito com o esforço que a nossa população está fazendo para aderir às medidas de isolamento. Mas queria pontuar que testagem em massa não funciona assim. Não adianta testar todo mundo e “se der negativo e eu posso ir pra rua”, porque essa pessoa que deu negativo pode se contaminar depois. O que o epidemiologista quer quando ele fala em testagem em massa são testes disponíveis para poder testar todos que sejam suspeitos de estarem contaminados. Isso é o que o Pedro Hallal (reitor da UFPel) falou, o que sugeriu o comitê científico do estado: busca ativa de casos. O que isso quer dizer?

Quando tenho uma suspeita e acho um caso, eu procuro todos os contatos dessa pessoa para poder isolar o grupo e evitar que essa contaminação se espalhe. Tem aqueles casos de uma pessoa que estava contaminada e foi num grande evento e acabou contaminando 200 outras pessoas… Isso é o que a gente não quer que aconteça. Então, quando a gente fala em muitos testes, são testes bem aplicados, para uma estratégia de controlar o contágio.

EC – A terceira etapa da pesquisa Epicovid-19, divulgada em maio, mostra que cada caso de contágio registrado no estado corresponde a outros dez não notificados. O que isso representa?
Jeruza – A gente chama isso de não notificação. Não estamos chamando de subnotificação porque, pelo protocolo estadual, quando uma pessoa tem sintomas e vai internar, a gente testa. Essa é a indicação de testar. E não achamos que tem uma subnotificação significativa de casos internados. Pelo menos em Porto Alegre a gente está testando bem e aqui se testa inclusive casos ambulatoriais, assim como em algumas outras cidades do estado. Quem interna por sintomas terá teste, a gente vai reportar e identificar esse caso. Agora, pense em outras doenças, gripe, dengue, a gente nunca pensa naquela pessoa que ficou com o nariz escorrendo durante dois dias e depois ficou bem. Eu nunca tenho a medida desse caso. Isso não é uma “subnotificação”, porque não é uma coisa que deveria ter sido notificada e não foi. Por isso estamos falando em “não notificação”. Esse dado de um caso notificado para cada dez no estado é bem alinhado com o que a gente conhece da doença hoje. Um percentual das pessoas vai ter sintomas, outro percentual não vai ter e um pequeno percentual vai precisar de internação, que é esse “1” que a gente está identificando, e deste, um percentual menor ainda vai ficar grave, vai precisar de CTI, de mais recursos. Essa não notificação de dez casos para cada um identificado está de acordo com o que a gente conhece da patologia, mas ela fala a favor de a gente continuar com algumas medidas de isolamento. Porque esses dez casos, não é simplesmente que estamos “vendo errado”, que “tenha faltado teste” – pode ter um pouco disso misturado, mas o mais provável é que a pessoa simplesmente tenha tido sintomas leves. Ficou com uma dor de garganta leve, um pouco de tosse, um um pouco de falta de ar, ficou em casa –,  se ela está estável ela não tem indicação de se expor a mais risco no serviço de saúde – e essa pessoa tinha infecção por coronavírus.

EC – O estado tem quase 20 mil casos notificados e 423 mortes e uma taxa média de ocupação de leitos acima de 70%. É o momento para relaxar o distanciamento social?
Jeruza – É esperado que tenhamos que abrir e fechar de novo, por regiões ou setores, de acordo com o número de casos e diversas outras métricas a serem acompanhadas. Eu, como epidemiologista, estou de acordo com a abertura gradual ou parcial de alguns setores da economia quando a curva de casos permitir, e se estivermos fazendo essa busca ativa de contatos para evitar surtos, fazendo essa vigilância forte.

Nesse momento, pela lotação em CTI que estamos vendo, precisamos que a população fique em casa; se não controlarmos o contágio, podemos ver o colapso do sistema em poucas semanas. Então agora é fundamental sim que seja respeitado o isolamento, de forma muito dura, particularmente que se evite aglomerações, até que tenhamos novamente uma situação de mais controle.

EC – O que acontece se o sistema de saúde colapsar?
Jeruza – Hoje eu tenho 41 pacientes internados em CTI. Esse pequeno percentual de pessoas que ficou grave vai receber um tratamento de excelência pelo Hospital de Clínicas. Terão intensivistas altamente treinados, equipamento de ponta, as famílias dessas pessoas vão ter apoio psicológico – porque esses pacientes não podem receber visitas, eu tenho profissionais trabalhando com os intensivistas para ajudar a passar notícias aos familiares. Todo esse arsenal de excelência para tratar esses casos. Enquanto a nossa curva estiver controlada e os novos casos tiverem espaço no sistema de saúde a gente pode continuar prestando esse cuidado de excelência para os pacientes. Se a gente perder o controle da curva e eu não tiver mais espaço em enfermaria, em CTI, em hospital para esses pacientes, aí a mortalidade dessa doença pode aumentar muito. E a gente vai perder vidas que nós não deveríamos perder.

EC – As projeções no tempo de quando será o pico da curva no estado, se em julho, agosto, setembro mudam de acordo com as medidas que permitem controlar a curva…
Jeruza – Exatamente. Eu vou citar de novo o Pedro Hallal, porque ele é um excelente epidemiologista e o coordenador da pesquisa Epicovid-19, ele fala muito bem que quando a gente está ganhando, às vezes parece que não precisa fazer todo o nosso esforço, quando se tem um bom resultado, a gente se sente tentado a falar “está tudo bem, vou visitar os amigos, fazer um churrasquinho, poxa faz tanto tempo que não vejo meus primos…”. Eu acho que é justo a gente ter esses desejos, nós somos seres sociais. Mas por que que a nossa curva esteve assim? Eu acho que em grande parte é mérito da sociedade gaúcha que aderiu muito bem às medidas de distanciamento. Na primeira série do inquérito populacional, a gente tinha quase 80% das pessoas dizendo que não saíam de casa ou só saíam para o necessário. E essas previsões de pico, elas são móveis de acordo com a situação que a gente está vendo. Se a gente não fizesse nada é possível que já tivesse um pico muito alto de casos, muitos casos diagnosticados e aí teria também um sistema de saúde talvez colapsando. Mas achatamos a curva, conseguimos empurrar esse pico de contágio. No entanto, algum tempo após uma reabertura parcial, nós sentimos uma demanda muito aumentada por leitos de CTI, e estamos com dificuldade de conseguir ampliar leitos na mesma velocidade que eles estão sendo demandados. Precisamos então de distanciamento novamente, precisamos nos esforçar para controlar novamente nossa curva. É claro, fica um quadro mais arrastado, mas é como eu falei, todas as pessoas que precisam de recursos de saúde conseguem recebê-los.

EC – As políticas de distensão do isolamento devem considerar que relaxar o isolamento também pode levar ao descontrole do contágio?
Jeruza – Isso. Se a gente relaxar demais de uma vez e não estiver controlando casos e prestando atenção na contaminação, pode perder o controle e acho que ninguém quer isso, porque com o colapso do sistema de saúde não adianta tentar voltar a trabalhar, etc. Nós vínhamos com uma curva parcialmente controlada, mas agora vimos um aumento da demanda por leitos críticos. Ainda estamos conseguindo atender os novos casos, mas o sistema pode colapsar se não controlarmos novamente a curva. E quando isso acontecer – porque espero que aconteça, que logo vejamos melhora nos indicadores, a partir de um reforço nas medidas de isolamento por parte da população – o nosso desafio será seguir vigilantes, seguir com medidas que permitam que o sistema dê conta da demanda.

EC – O modelo de distanciamento adotado no estado contempla a expectativa da comunidade médica?
Jeruza – Eu acredito que sim, dentro do possível, dentro das limitações políticas e econômicas que entendo que existam. Acho que você vai ter dificuldade de encontrar um consenso na comunidade médica. Principalmente aqui no RS a gente tem uma tradição muito forte de ciência, de epidemiologia, gosta muito de debater. Mas se tentarmos passar o que é consenso, achamos que algum isolamento precisa: talvez um epidemiologista queira voltar com a escola um pouquinho antes ou depois, são as interpretações da evidência de cada um.

Nesse momento nós, do HCPA, temos visto aumento de demanda e gostaríamos de ver um maior engajamento da sociedade nas medidas de distanciamento. De forma geral, a receita que a gente tem visto dos países que estão tendo sucesso é a abertura controlada, acompanhamento dos casos, a testagem, muita testagem quando a gente tenta fazer reabertura para que não seja pego de surpresa por uma explosão de casos, seguir fazendo esse acompanhamento. Quem puder ficar em casa estará ajudando toda a sociedade.

EC – Qual a sua expectativa, enquanto cientista, em relação à duração da pandemia – ou até a aprovação de uma vacina?
Jeruza – É difícil prever a duração da pandemia como um todo. Provavelmente teremos ainda vários meses em que serão necessárias medidas de distanciamento e vigilância de casos. Ainda, é possível que após a curva inicial de casos tenhamos outras, e precisaremos responder de acordo. Deve demorar ainda para podermos voltar a algum “normal” se pensarmos em “normal” como “vida pré-pandemia”. Temos no momento 60 projetos de pesquisa submetidos no HCPA que tratam de Covid-19 / Sars-CoV-2. Quanto a vacinas, o desenvolvimento delas é sempre um processo um pouco lento se comparado à evolução da pandemia. Temos alguns estudos promissores internacionalmente, mas no momento nada ainda em produção, todas as vacinas ainda estão em fase de testes.

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