Kit anti-Covid-19 com remédios perigosos e sem comprovação é distribuído no RS
Kit anti-Covid-19 sem comprovada eficácia é distribuído com dinheiro público no RS
Cerca de 150 prefeituras do Rio Grande do Sul estão recomendando a adoção de um coquetel para tratar preventivamente pessoas suspeitas de contaminação por covid-19 que inclui antialérgicos, anti-inflamatórios, suplementos minerais e antibióticos sem qualquer relação com infecções de origem viral.
Os kits começaram a se multiplicar pelo Estado justamente no pico da infecção por coronavírus: na terça-feira, 28, o Rio Grande do Sul bateu recorde diário de mortes pela doença. Foram 68 óbitos – 21 deles em Porto Alegre – e 2.405 novos casos confirmados de covid-19 em apenas 24 horas.
O pacote de medicamentos, comprado em grande parte com dinheiro público, tem desde metoclopramida, fármaco usado contra distúrbios gastrointestinais cujo nome comercial mais conhecido é Plasil, até um poderoso corticoide de uso controlado, a prednisona, indicado para o tratamento de asma e broncoespasmos. Se usados sem prescrição adequada ou acompanhamento médico, podem causar sérios problemas de saúde.
A maioria dos kits inclui também um composto de zinco, que supostamente favorece a imunidade contra infecções, e vitaminas C e D, além do bactericida ivermectina, usado contra sarna e piolhos, e do antibiótico azitromicim, para infecções bacterianas. Os medicamentos recomendados estão relacionados aos principais sintomas da Covid-19, como problemas respiratórios e gastrointestinais, mas não há qualquer comprovação científica de que atuem para combater ou prevenir a doença.
Ato médico
Os kits estão respaldados por uma portaria do Ministério da Saúde do mês passado, que autoriza as prefeituras a adotarem seus próprios protocolos sanitários desde que garantidos pelo chamado “ato médico”. Isso quer dizer que se houver prescrição, as prefeituras podem oferecer os medicamentos mesmo sem a comprovação da doença.
Uma das primeiras prefeituras a adotar o procedimento foi Lajeado, na Vale do Taquari. O município definiu seu kit, elaborado por um grupo de 21 médicos da região, no dia 18 de junho. A cesta, segundo a prefeitura, inclui quatro medicamentos “de uso específico para a Covid-19”, embora as principais organizações de pesquisa médica afirmem que não há uma terapia disponível para a doença: azitromicina, zinco, ivermectina e cloroquina.
O secretário municipal de Saúde, Cláudio Klein, reconhece que não há “até o momento” comprovação de eficácia e nem de segurança de um tratamento para o coronavírus. Mas que, desde o surgimento da pandemia, estudos e pesquisas têm sugerido que o uso de alguns medicamentos “pode ter algum nível de eficácia” no tratamento da Covid-19.
Passados mais de 30 dias da terapia anti-Covid, Lajeado continua com altos índices de contaminação e mortalidade. Segundo o boletim epidemiológico desta quarta-feira, 29, a cidade registra 30 mortes por cada 100 mil habitantes – 50% a mais que em Porto Alegre – e 2,3 mil casos igualmente para cada 100 mil habitantes. O índice é um dos mais altos do Estado.
“Não queremos criar polêmica, mas sim oferecer uma alternativa para o médico e para os pacientes que desejarem. Sempre avaliando em conjunto os riscos da decisão. O protocolo que criamos não é uma obrigação, mas uma possibilidade”, disse Klein, que é médico pneumologista.
Prescrição médica em duas vias
O problema é convencer a população de que a terapia, além de inócua, pode ser perigosa. Por dois motivos: por envolver medicamentos, em alguns casos, de uso controlado, como corticoides e antibióticos, e por estimular a automedicação. A tal ponto que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) se viu obrigada a exigir, em circular publicada na última quinta-feira, 23, prescrição médica em duas vias para a compra em farmácias de cloroquina, hidroxicloroquina, ivermectina e nitazoxanida – que é um vermífugo também sem efeito comprovado contra a doença.
A decisão causou uma enxurrada de críticas e de notícias falsas, que acusam a Anvisa de restringir o uso dos medicamentos por serem baratos e por ajudarem no combate à Covid-19. Não há nenhuma evidência científica sobre isso.
“É um protocolo extremamente perigoso e não-recomendável, surgido por pressão política da indústria farmacêutica e das prefeituras. Vários desses medicamentos provocam efeitos colaterais que podem ser graves”, critica o presidente do Conselho Estadual de Saúde, Cláudio Augustin. Ele classifica a cesta de medicamentos distribuída pelas prefeituras como “kit-veneno”.
Sem consenso e polêmica
Em Sapiranga, no Vale do Sinos, o kit é composto por 13 medicamentos. Em Marau, município da região Norte do Estado, a prefeitura ofertou o kit mesmo contra a indicação dos médicos locais. A cidade tem índices de contaminação e mortalidade ainda mais altos que Lajeado, apesar do kit estar sendo ofertado há duas semanas.
Em Bento Gonçalves, a experiência iniciou na semana passada. O coordenador médico da prefeitura, Marco Antônio Ebert, também reconhece que a oferta dos kits “é polêmica”, mas salienta que a decisão municipal foi tomada por um grupo de especialistas, “embora sem consenso”, e que os pacientes estão sendo acompanhados. Já foram distribuídas 160 cestas de remédios, segundo os dados mais recentes.
“Sabemos que não há evidência científica da eficácia, mas é uma tentativa de incrementar a imunidade da população e segurar a velocidade de contágio num momento de avanço da pandemia. Houve muita pressão para que o kit fosse adotado”, afirmou Ebert – ele mesmo contrário ao uso de alternativas sem comprovação. Segundo ele, medicamentos controlados como corticoides estão sendo prescritos apenas para as fases agudas da doença. Toda a terapia é adquirida com recursos municipais.
Segurança jurídica
Outros gestores de saúde relatam a mesma pressão, tanto por parte de prefeitos quanto do comércio e indústria locais. A Associação dos Municípios do Vale do Taquari (Amvat), que reúne 32 municípios filiados, recomendou que as prefeituras adotem o kit “como alternativa ao distanciamento controlado”. A associação contratou um escritório de advocacia para dar “segurança jurídica” aos gestores com relação à medida.
Na Serra gaúcha, os 27 municípios que fazem parte da Associação dos Municípios da Encosta Superior do Nordeste (Amesne) assinaram um termo de ajustamento de conduta (TAC) com o Ministério Público Federal para adoção do protocolo de tratamento precoce de Covid-19 em âmbito municipal. O Ministério Público Estadual informou que cabe aos municípios a decisão de adotar ou não a terapia, autorizada por portaria do Ministério da Saúde.
O presidente da Sociedade Rio-grandense de Infectologia, Alexandre Schwarzbold, alertou para os riscos do uso indevido dos medicamentos por parte da população. “Os efeitos colaterais são difíceis de prever, especialmente para pessoas que têm problemas cardíacos ou hepáticos. Outro risco é criar uma falsa sensação de segurança, que pode levar ao abandono de proteções realmente eficazes, como uso de máscara e o distanciamento social”, afirmou.
Num comunicado da última quinta-feira (23), a Secretaria de Saúde do Rio Grande do Sul descartou a possibilidade de adotar um protocolo uniforme de tratamento precoce para a Covid-19 “até que as evidências científicas sejam comprovadas”. O documento, assinado pela secretária Arita Bergmann, determina ainda que a prescrição de medicamentos deverá ser acompanhada por um termo de consentimento entre médico e paciente e de “avaliação e monitoramento” periódicos.
Também afirma que a prescrição da terapia e o momento de sua indicação “devem ser circunscritos à consideração individual avaliada no âmbito da relação médico-paciente” – ou seja, exclui as prefeituras de recomendar o uso do kit. A decisão foi baseada em parecer do Centro de Operações de Emergência em Saúde Pública do Estado.