Bancos de pele atendem apenas 10% das necessidades do país
Foto: Igor Sperotto
O Brasil possui apenas quatro bancos de pele que suprem somente 10% das necessidades desse importante curativo biológico. O transplante de pele pode ajudar vítimas de queimaduras e lesões graves, evitando o agravamento do quadro, além de proporcionar uma melhora estética. O enxerto possibilita que o paciente com queimadura sobreviva às primeiras semanas de tratamento, quando está sem cobertura epidérmica. A pele transplantada funciona como um curativo biológico, diminuindo a dor, a perda de líquidos pela ferida e a chance de infecção.
Além dos bancos de pele insuficientes e as escassas doações de pele, a pandemia reduziu ainda mais a doação de órgãos e tecidos para transplante.
Foto: Igor Sperotto
Neste Setembro Verde, criado para incentivar a doação de órgãos, a equipe do projeto Cultura Doadora visitou o Banco de Pele da Santa Casa, e vem intensificando os diálogos para estimular a doação e reduzir a negativa familiar quando confirmada a morte encefálica.
O cirurgião plástico e diretor do Banco de Pele da Santa Casa de Porto Alegre, Eduardo Chem destaca que há pouca quantidade de tecidos em estoque, uma vez que tudo que existe é utilizado em pacientes graves (queimadura de terceiro grau e extensa região). “Se tivéssemos mais doações, poderíamos utilizar em tratamentos de queimados não tão graves e também nos politraumatizados. Um banco ou dois por estado seria de bom tamanho”, afirma.
Os curativos de pele não são usados em muitos casos pela absoluta falta. Com a covid-19, aumentaram os acidentes domésticos e cresceu muito o número de pacientes com feridas (escaras) pelo longo tempo de internação, que também poderiam cicatrizar mais rapidamente com o uso de curativos de membrana amniótica.
Pioneirismo e fonte de formação
O Rio Grande do Sul criou o primeiro Banco de Tecidos Humanos, em 2005, na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Até 2012 foi o único em funcionamento no Brasil, atendendo toda a demanda nacional.
Após essa data foram criados bancos de pele em São Paulo (2012), Recife (2013) e Rio de Janeiro (2015), todos com pessoal capacitado na unidade gaúcha. Outros dois estão previstos, em Salvador (BA) e Ribeirão Preto (SP). A Organização Mundial da Saúde (OMS) preconiza que cidades com mais de 500 mil habitantes tenham um banco de pele.
Todos os bancos de pele são mantidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e são responsáveis pela captação, processamento, conservação e distribuição do material para todo o país.
O transplante de pele iniciou na década de 1920 e revolucionou a medicina. O primeiro banco de pele no mundo foi criado pela Marinha Americana em 1949 e atualmente os EUA tem 60 centros espalhados em todo o país.
Legalização do uso da membrana amniótica
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Há um desafio, próximo de ser vencido no país, que deve suprir a demanda nacional e de forma muito mais econômica para o sistema público de saúde, assegura o cirurgião que presidiu a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP) e preside a regional da Sociedade Brasileira de Queimaduras (SBQ).
Trata-se de autorizar o uso da membrana amniótica, tecido que envolve a placenta, material avascular totalmente descartado nos partos por cesariana. Com essa legalização, 100% das necessidades por pele seriam supridas com um material que supera em cicatrização, qualidade e em custo qualquer outro curativo biológico.
Em média um paciente com queimadura extensa pode utilizar cerca de 2,5 mil cm2 de pele, que vão descamando aos poucos até cicatrizar. Os curativos sintéticos podem custar próximo a R$ 50,00 o cm2, enquanto o custo de processamento da pele pode ficar entre R$ 1,00 e R$ 2,00 o cm2 do tecido. Já a membrana amniótica extraída da placenta tem custo ainda mais baixo, uma vez que a mãe já tem o pré-natal e exames feitos, sendo que seu processamento gira em torno de R$ 0,20 centavos o cm2.
A maioria dos países, entre os quais os europeus, EUA e vários vizinhos latino-americanos já utilizam esse material há muitos anos. Os pacientes queimados no incêndio de 2013, da Boate Kiss, em Santa Maria, foram tratados com membrana amniótica com autorização especial pelas autoridades sanitárias, permitida em catástrofes. Inúmeros países socorreram o Brasil, enviando seus estoques de curativos procedentes de membrana para atender as mais de 100 vítimas internadas com queimaduras.
Prazo incerto, caminhada compensadora
Foto: Igor Sperotto
Desde o incêndio da Boate Kiss, que deixou 242 mortos e 690 feridos, o doutor Chem protagoniza um movimento nacional para garantir o uso desse suprimento e realiza há oito anos uma verdadeira cruzada pela normatização. “Foram incalculáveis as vezes que tivemos de ir a Brasília dar explicação e provar a importância que isso tem para salvar vidas no país. Mas a gente não desiste. Esse trabalho é bonito, é gratificante, e tem frutos”, resume.
O cirurgião enumera as muitas etapas já superadas: redação do projeto de lei e aprovação no Senado; análise nos ministérios de Ciência e Tecnologia e da Saúde e sanção pela presidência da República. O projeto está no Conselho Federal de Medicina, onde foi criada uma Câmara Técnica responsável por formatar os protocolos e enquadramentos às normativas do SUS e após deve ser avalizado pelo Sistema Nacional de Transplantes. “Não temos ainda como precisar o prazo de conclusão”, diz Chem, integrante da Câmara Técnica, detalhando que as reuniões precisam ser presenciais e foram interrompidas na pandemia.
Entusiasmado por concluir essa conquista, ele adianta que as condições técnicas estão plenamente disponíveis. “Temos toda a estrutura, toda a área física e a expertise para captação e processamento. E temos uma maternidade dentro do hospital. É uma opção com grande disponibilidade e baixíssimo custo”, observa Chem. “Se usássemos somente o material das cesarianas da maternidade da Santa Casa, cerca de 10 por dia, tirando todos os que não queiram doar ou seja, portadores de doenças, teríamos 6 milhões de cm2 ao ano”.
“Nossa visita é um reconhecimento a todo esse trabalho e trazemos nosso apoio a este esforço pela autorização do uso da membrana amniótica. É um avanço importante para ter esse material em abundância que trará mais conforto aos pacientes e ajudará a salvar muitas vidas”, registrou o idealizador do projeto Cultura Doadora e diretor da Fundação Ecarta, Marcos Fuhr.
Queda nas doações
Foto: Igor Sperotto
A biomética Carla Zanatelli atua há três anos no Banco de Pele da Santa Casa e desabafa: “temos toda a capacidade técnica para processar grandes quantidades de material. Mas vivemos a frustração de dizer aos hospitais que nos pedem que não temos estoque”. Ela descreve que após captar a pele de doadores, o material passa por várias etapas de limpeza, análises laboratoriais e outros tratamentos que demoram até 45 dias para que os curativos estejam prontos para uso.
Como as doações de órgãos e tecidos, a de pele também necessita de autorização familiar. Diferente do que ocorre com órgãos, que só podem ocorrer em pacientes com morte encefálica, a pele pode ser captada de pacientes vítimas de parada cardiorrespiratória.
No Brasil, 42% das famílias negam a doação de órgãos de seus familiares e o percentual é ainda maior quando se relaciona a doação de tecidos, que são pele e córneas.
No RS, a captação da pele é feita nos hospitais de Porto Alegre e Região Metropolitana. É retirado apenas 1,5 milímetro de espessura e costuma ser captado do tórax, abdômen, dorso, braços e coxas, áreas enfaixadas, deixando a aparência do doador preservada. A pele doada pode ser armazenada por até dois anos.
No mesmo dia da visita, o Banco de Pele estava expedindo curativos para Salvador (BA), para atender uma severa queimadura em paciente infantil. A última captação do Banco havia sido feita em 30 de julho e os estoques estavam praticamente vazios.