SAÚDE

Movimento busca apressar processo para uso da membrana amniótica no SUS

Autorizada pelo Conselho Federal de Medicina em novembro, a utilização da membrana amniótica no tratamento clínico depende agora da finalização do processo pelo SNT e pela Conitec
Por Stela Pastore / Publicado em 22 de dezembro de 2021
O cirurgião plástico Eduardo Chem

Foto: Stela Pastore

O cirurgião plástico Eduardo Chem, diretor do Banco de Pele do Hospital Santa Casa de Porto Alegre, é um dos grandes defensores do uso da membrana amniótica em tratamento clínico. Na foto, ele mostra crianças com queimaduras graves, uma realidade diária nos hospitais, que teriam um salto de qualidade no tratamento com a utilização da membrana

Foto: Stela Pastore

A Sociedade Brasileira de Queimaduras (SBQ) encaminhou ofício ao Sistema Nacional de Transplantes (SNT) para que apresse os trâmites para regulamentar o uso da Membrana Amniótica Humana (MAH), camada mais interna da placenta, como curativo biológico no Sistema Único de Saúde (SUS).

A utilização da membrana amniótica no tratamento clínico no país foi autorizada pelo Conselho Federal de Medicina em novembro deste ano, mas depende ainda do Sistema Nacional de Transplantes e da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), que devem finalizar o processo, considerado um marco para grandes avanços no tratamento no sistema público de pacientes queimados ou politraumatizados.

“Vai revolucionar o tratamento dos queimados no Brasil e melhorar os nossos resultados ao longo dos anos. Terá grande impacto no tratamento de queimaduras e feridas. Vai diminuir muito o número de infecções e de septicemia, grande fator de morte dos grandes queimados”, atesta o cirurgião plástico e presidente da Sociedade Brasileira de Queimados (SBQ), José Adorno. Ele lembra que mais de 95% dos pacientes queimados do país são tratados no SUS.

NESTA REPORTAGEM
O enxerto possibilita que o paciente com queimadura sobreviva às primeiras semanas de tratamento, quando está sem cobertura epidérmica.

A membrana funciona como um curativo biológico, diminuindo a dor, a perda de líquidos pela ferida e a chance de infecção. Além das amplas vantagens entre o curativo biológico e os produzidos pela indústria farmacêutica, os custos econômicos para o uso da MAH são incomparavelmente inferiores, reduzindo os valores de tratamento para o sistema público.

Somando forças

O projeto Cultura Doadora se somou ao movimento nacional e encaminhou ofícios para o Sistema Nacional de Transplantes e a todos os órgãos que compõem a Conitec, destacando a importância dessa agilização para salvar vidas.

“Destaco a expectativa de urgência no cumprimento de mais esta etapa de um processo de regulamentação incompreensivelmente alongado, com evidente desproporcionalidade com os sobejos benefícios que advirão para milhares de vítimas que anualmente são acometidas de graves queimaduras, além de outras enfermidades que demandam os bancos de peles do país”,  expressa um dos trechos do documento assinado pelo presidente da Fundação Ecarta, Marcos Fuhr. A entidade é mantenedora do projeto Cultura Doadora.

Curativo melhor de todos

“O curativo com membrana amniótica é analgésico, antibiótico, profilático. Nenhum outro tem isso. Se aproxima do curativo ideal. Não é milagroso, mas bem utilizado pode ser usado em queimaduras de primeiro a terceiro grau, constituindo um curativo fundamental para a melhora do paciente”, testemunha o cirurgião plástico Pablo Pase, que esteve à frente da Unidade de Queimados do Hospital de Pronto Socorro de Porto Alegre (HPS) por 11 anos.

Ele e a equipe do HPS atenderam dezenas de pacientes do incêndio da Boate Kiss, com cirurgias diárias durante várias semanas, período em que três das cinco UTIs do hospital ficaram lotadas por queimados. O incêndio, ocorrido em janeiro de 2013, em Santa Maria (RS), provocou a morte de 242 pessoas e ferimentos em outras 636.

“Há disponibilidade altíssima de material, com grande facilidade de obter a membrana com enorme vantagem sobre curativos como os procedentes de pele de porco ou tilápia. O uso desse curativo muda paradigmas e protocolos na fase aguda da queimadura porque alivia na hora”, completa Pase.

O médico faz um destaque particular desse material para uso pediátrico. “É um privilégio, uma honra ter um material dessa qualidade para face de crianças queimadas de segundo grau. Chegam na UTI com muita dor e têm uma recuperação plena e fantástica em poucos dias”, enfatiza.

Experiência comprovada

O uso da membrana é antigo e com grande comprovação científica de seus benefícios. No Brasil foi usado extensivamente até a descoberta do HIV, no início da década de 1980, quando foi proibido seu uso. A partir da criação dos bancos de pele e todos os protocolos rigorosos utilizados para o preparo dos curativos, os profissionais de saúde clamam pela urgência da retomada do uso da membrana.

Uma das experimentadas cirurgiãs gaúchas a utilizar o material é Maria da Graça Costa, integrante da Unidade de Queimados do Hospital Cristo Redentor, em Porto Alegre. Cirurgiã plástica há 46 anos, ela relata inúmeros tratamentos com esse biomaterial.

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Hoje, no Brasil, a membrana amniótica vai para o lixo, é descartada, destaca a médica Maria da Graça Costa, do Hospital Cristo Redentor de Porto Alegre.

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“Usei há muitos anos e usei por muito tempo. Salvei muitas pessoas com grandes queimados. Não tem nada melhor de curativo biológico que a membrana amniótica. É um recurso incrível. Não há nada que se compare. Não tem pele de tilápia, rã, porco, nada que se compare. É muito bom. É excelente”, relata a médica, que também tratou inúmeras vítimas do incêndio na Boate Kiss com curativos de membrana fornecidos pelos países vizinhos. “Naquela ocasião, usamos todos os tipos de curativos que tínhamos”, completa.

“Hoje, no Brasil, a membrana amniótica vai para o lixo, é descartada”, destaca. “É muito barato promover o seu uso. Na indústria farmacêutica, a pressão é grande para que não se use porque não dá dinheiro para ninguém”, ressalta, destacando os interesses econômicos para dificultar o acesso a esse biomaterial que vem pronto da natureza, exigindo apenas ser captado, esterilizado nos bancos de pele e acondicionado adequadamente para uso em inúmeros casos e pacientes.

Doutora Graça, como é conhecida, conta que ela mesma ficava no plantão do Hospital Fêmina, aguardando as cesarianas. Selecionava os prontuários das gestantes saudáveis e após a autorização da paciente, realizava a coleta da membrana, transportava o material para o hospital Cristo Redentor, realizava o tratamento do tecido e o utilizava nos curativos dos pacientes queimados.

“A gente via a reepitelização (etapa de cicatrização) muito boa nos pacientes. Achávamos que eram os hormônios da membrana. Hoje sabemos que é um material rico em células tronco, que na época não se falava ainda. Além de ser uma membrana dupla, pode ser delaminada em duas, com grande elasticidade, podendo cobrir áreas bem grandes”, descreve a cirurgiã. Ela é mais uma das especialistas que conhece os benefícios e se soma à corrente nacional para a retomada do uso desse curativo no SUS.

Persistência para salvar vidas

A cruzada para o uso da membrana amniótica em curativos foi iniciada pelo cirurgião plástico Eduardo Chem, diretor do Banco de Pele da Santa Casa de Porto Alegre, após o incêndio da Boate Kiss. Por ser uma situação de calamidade, a legislação brasileira autorizou o uso da membrana amniótica, demandada de bancos de pele da Argentina e Uruguai, permitindo o tratamento com excelentes resultados em grande número de pacientes.

Nesses oito anos de mobilização, muitas etapas foram vencidas para regulamentar o uso da membrana amniótica. A redação do projeto de lei e aprovação no Senado; análise nos ministérios de Ciência e Tecnologia e da Saúde, sanção pela presidência da República e criação de Câmara Técnica no Conselho Federal de Medicina já foram concluídas.

Bancos de pele preparados

O país tem quatro bancos de pele que suprem somente 10% das necessidades de curativos biológicos por ter que usar somente pele de cadáveres a partir de doadores. A negativa dos familiares para doação de órgãos no Brasil chega a quase 50% nos óbitos com morte encefálica. Além disso, a pandemia acentuou a redução na doação e transplantes de todos os órgãos.

“Com a legalização do uso da membrana amniótica, 100% das necessidades por pele seriam supridas com um material que supera em cicatrização, qualidade e em custo qualquer outro curativo biológico”, resume Eduardo Chem, diretor do Banco de Pele da Santa Casa, primeiro banco do gênero, criado em 2005.

O cirurgião plástico relembra que a maternidade da Santa Casa fica junto ao Banco de Pele, com enorme facilidade de captação e com grande oferta de biomaterial.

Todos os bancos de pele são mantidos pelo SUS e são responsáveis pela captação, processamento, conservação e distribuição do material para todo o país. Além de Porto Alegre, foram criados bancos em São Paulo (2012), Recife (2013) e Rio de Janeiro (2015). Outros dois estão previstos, em Salvador (BA) e Ribeirão Preto (SP).

Capacitação das equipes médicas

O médico José Adorno

Foto: Arquivo Pessoal/Divulgação

O objetivo da Sociedade Brasileira de Queimaduras é ter cada vez menos queimaduras e quando existem que se recuperem rápido, destaca o médico José Adorno

Foto: Arquivo Pessoal/Divulgação

O cirurgião plástico José Adorno, presidente da Sociedade Brasileira de Queimaduras, aponta que os bancos de pele estão capacitados para captação, preparo e envio do membrana amniótica.

Porém, ele destaca a importância das equipes técnicas estarem preparadas para o uso desse curativo e suas diferentes indicações. A Universidade de São Paulo (USP) está oferecendo formação para 90 cirurgiões do país com subsídios públicos, capacitando os profissionais que operam no SUS.

José Adorno participou da formação e destaca a importância de conhecer mais e ajudar a discussão em rede de como melhorar a tecnologia. “Todos têm a mesma leitura da importância de oferecer conhecimento e estudos científicos para aumentar a demanda e ter pressão positiva,” observa o cirurgião.

Ele ressalta que a Sociedade Brasileira de Queimados atua, desde sua criação há 30 anos, no incentivo de políticas públicas de saúde. “O objetivo da SBQ é ter cada vez menos queimaduras e quando existem, que os pacientes se recuperem rápido. Só critica o SUS quem não conhece. É um sistema que traduz avanço na democracia no mundo. Num país de diferenças sociais profundas, é equânime, integrado e justo”, conclui.

Avanços e novos usos

A membrana amniótica humana tem sido utilizada como biomaterial para reconstruções cirúrgicas há quase 100 anos. A proposta de se estudar cada vez mais esse tecido tem constituído uma promessa de melhora significativa na qualidade de vida humana.

Várias pesquisas apontam o enorme potencial de absorção, elevada biocompatibilidade, capacidade regenerativa e facilidade de aplicação da MAH. O seu emprego tem se estendido para várias áreas da medicina como na reconstrução da cavidade oral, bexiga, timpanoplastia, artroplastia, onfalocele e na prevenção de adesão tecidual em cirurgias da cabeça, abdômen, pélve, vagina e laringe.

A membrana fetal é composta por duas camadas principais: a camada externa da placenta, que entra em contato com as células maternas, e a membrana amniótica, chamada também de âmnio, camada mais interna que está em contato íntimo com o feto e é separada dele apenas pelo líquido amniótico. É uma membrana translúcida com grande quantidade de colágeno, laminina, camada basal espessa e uma matriz avascular e sem suprimento sanguíneo direto. Na espécie humana, a membrana surge nos 10 primeiros dias após a concepção.

Para o uso como curativo biológico, a membrana amniótica deve ser coletada por cesariana de doadora saudável, sem sinais de qualquer tipo de infecção. Seu processamento deve ser realizado em condições estéreis nos bancos de pele.

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