Proibida, a cura gay ainda é praticada em consultórios
“Eu estava perdendo minha identidade como homem gay em busca de uma identidade que não existe. Me vi uma pessoa sem identidade, sem vontade de viver e extremamente triste”, relata Carlos*, 30, que passou por diversas tentativas de terapia de conversão, a chamada “cura gay”, quanto tinha 18 anos.
Há 32 anos, a Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou a homossexualidade da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID). No entanto, profissionais da psicologia, medicina e de outras áreas ainda atuam prometendo cura. De acordo com a pesquisa Crenças e Atitudes Corretivas de Profissionais de Psicologia sobre a Homossexualidade, de 2018, orientada pelo professor doutor e coordenador do grupo de pesquisa sobre preconceito, vulnerabilidade e processos psicossociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Angelo Brandelli Costa, um em cada três psicoterapeutas ainda se propõe a mudar a orientação sexual de homo/bissexual para heterossexual quando solicitado pelo paciente, e um em cada nove possui atitudes de conversão sem o pedido do paciente.
O estudo, conduzido pelo mestre em Psicologia Jean Ícaro Pujol Vezzosi, ouviu 692 profissionais e concluiu que a utilização das “atitudes corretivas” faz parte, sobretudo, de um contexto social maior de preconceito. “Essas terapias vendem uma ideia que o problema está na pessoa que é LGBT. Ou seja, desvia daquilo que realmente é o problema, que é o preconceito que gera discriminação”, afirma Jean.
Para o pesquisador e também autor do livro Cura gay: não há cura para o que não é doença (Editora Taverna, 2021, 138 págs.), o enfrentamento precisa ocorrer no sentido de combater a discriminação e mostrar que a homossexualidade é uma parte da vivência humana. “Não há nada para ser tratado ali. Não tem nada para ser modificado, não é um desvio, não é uma coisa anormal”, explica.
Hoje, esse tipo de terapia de conversão funciona de uma forma mais sutil e leve, se comparado aos métodos do passado, segundo Jean. Anteriormente, eram utilizadas técnicas cirúrgicas, internações, uso de hormônios e eletroconvulsoterapia. Contudo, mesmo deixando de lado essas intervenções, o “novo método” é tão danoso quanto.
Dentro do consultório
Durante a sessão, o profissional busca conduzir e motivar o paciente para que este queira mudar a orientação sexual. Jean esclarece que existe um “treino de habilidades heterossexuais”, além da tentativa de ensinar comportamentos típicos do que é “ser mulher e ser homem”, como os gestos, o comportamento e o tom de voz.
Carlos confirma a tentativa de uma educação para performar heterossexualidade. “Um dos passos do meu tratamento era resgatar a verdadeira masculinidade. Fiquei três dias em um acampamento, com profissionais dos Estados Unidos, para passar por este processo”, recorda. Ele também chegou a participar da direção de um dos acampamentos que prometiam a cura gay.
De acordo com ele, os retiros de cura que coordenou utilizavam um misto de emoções, pois o foco era trabalhar justamente este aspecto. “Estar lá era bom e ruim. Era um encontro que dava esperança na tal ‘cura’, depois percebíamos a realidade”, conta. Carlos explica que sempre gostou de participar dessas atividades, fazia parte da sua crença, por isso acreditava que o ambiente era normal. Hoje ele entende que era muito inocente em relação a este assunto.
Charlatanismo moderno
As terapias conversivas são consideradas um “charlatanismo moderno”. Os danos causados aos pacientes dependem do nível de intensidade aplicado nas tentativas de conversão. Jean sustenta que os problemas desenvolvidos vão desde disfunções sexuais graves até piora ou desenvolvimento de transtorno de ansiedade, transtorno de humor – principalmente depressão – e, em casos extremos, o paciente pode chegar a tentar o suicídio.
A experiência de Paulo*, 34, comprova que esses danos existem e podem mexer com pacientes que são submetidos a este tipo de terapia. Ele conta que, na época, quando estava com 32 anos, buscou um psicólogo cristão, pois participava da igreja e acreditava que essa seria a escolha ideal de profissional. Entretanto, a solução oferecida pelo psicólogo desencadeou outros problemas na vida de Paulo.
“Para ele (o terapeuta), meu único problema era eu nunca ter provado uma buc*tinha, foi exatamente dessa forma que ele falou pra mim. Ele me indicou procurar uma prostituta e disse que, depois de ter uma relação sexual, eu resolveria meu problema”, relata Paulo.
Depois dessa experiência, apesar de já ter sentido atração por mulheres, Paulo conta que desenvolveu uma barreira muito grande com qualquer mulher. Além de não conseguir ter a relação com a garota de programa, ficou com vergonha de relatar isso ao seu psicólogo e precisou lidar com essa trava.
Quebra do Código de Ética
Mesmo sendo aplicada em consultório, essa prática é ilegal e vai contra a Resolução nº 01/1999 do Conselho Federal de Psicologia (CFP). Conforme o órgão, a normativa “veta que as(os) profissionais da psicologia exerçam qualquer atividade que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas”. Proíbe, ainda, adotar ação coercitiva que busque orientar homossexuais para tratamentos não solicitados A norma impede, portanto, a prática de terapias na linha da cura gay.
Paulo, que hoje é estudante de Psicologia, afirma que não buscou denunciar o psicólogo pois não sabia da ilegalidade desse tipo de terapias conversivas. “Hoje, depois de estudar e estar dentro do curso, eu sei que poderia ter denunciado, mas deixei de lado isso, não quero tocar neste assunto”, registra.
A experiência de Carlos foi diferente. Ele afirma que buscou esse tipo de tratamento por questões religiosas, mesmo sabendo que essa espécie de terapia é proibida no Brasil. Ele, ainda, conta que há grupos no WhatsApp e Facebook com pessoas buscando essa “cura”.
Foto: Acervo Pessoal
Para Jean, mesmo com a publicação da Resolução, o CFP é pouco efetivo no seu papel de órgão fiscalizatório e punitivo. Desde 1999, apenas uma profissional perdeu o registro para atuar como psicóloga em virtude de fazer a utilização de práticas conversivas dentro do consultório. O pesquisador declara que é necessária a “criminalização da homo e da transfobia”. Ele justifica que só assim, do ponto de vista cível, haverá um respaldo jurídico que permitirá o processo de um profissional que tenha comportamento discriminatório, já que, em âmbito criminal, as terapias conversivas não são criminalizadas.
Mas esses comportamentos não devem passar impunes. Dentro do CFP, a(o) profissional que for denunciado(a) passa por diversas etapas de punições. Inicialmente, ela(e) deveria receber uma advertência, seguido de censura pública, cassação do registro profissional e, por último, a perda da licença. Essas são as etapas de atuação do Conselho em casos de denúncia por aplicação de terapias conversivas.
Porém, Jean explica que, após a advertência, os profissionais que agem dessa forma aprendem como “esconder melhor” esse tipo de desserviço. “Não há, necessariamente, um remorso ou uma mudança efetiva na postura do profissional. Basicamente, aqui no Brasil, a pessoa vai ficar mal falada se ela for publicizada por ter tentado fazer terapia de conversão, mas nos nichos dela, nas bolhas, as pessoas vão achar bonito e ela vai continuar vivendo a sua vida”, argumenta.
Como denunciar?
Para fazer a queixa, é ideal que a pessoa tenha evidências. Jean sugere que o paciente pode tentar gravar escondido a sessão, seja por áudio ou vídeo. Com essas provas, a pessoa deve se encaminhar até o Conselho Regional de Psicologia ou Conselho Regional de Medicina em cada estado para fazer a denúncia, que é completamente anônima. Caso prefira, é possível comunicar essa infração de modo on-line ou telefônico.
O Ministério Público também é outra porta para esse tipo de violação da ética profissional. Com as provas em mãos, o paciente entra em contato com a entidade, que servirá de mediadora e seguirá com a denúncia, procurando o Conselho da área que tentou fazer esse tipo de prática.
N. E.: Os nomes dos entrevistados foram alterados para preservar a sua integridade.
Douglas Glier Schütz é estagiário de jornalismo, com supervisão e edição de César Fraga