Isenções tributárias induzem consumo de alimentos ultraprocessados
Foto: Tomaz Silva/ Agência Brasil
Amparada por um arsenal midiático capaz de induzir o consumo quase inconsciente de alimentos vazios, fabricados à base de açúcares, conservantes e gorduras, a indústria de alimentos faz lobby para impedir a regulamentação da comida processada. E se beneficia de isenções tributárias que reduzem o custo de fabricação. É por isso que a comida ultraprocessada, que pouco alimenta e ainda produz obesidade e adoecimento, seduz os consumidores com preços mais atrativos e impõe barreiras a uma alimentação saudável. Devido às distorções tributárias, no Brasil os alimentos orgânicos e sustentáveis pagam até quatro vezes mais impostos que os produtos industrializados
O Guia Alimentar da População Brasileira, documento do Ministério da Saúde que estabelece as orientações para uma dieta saudável e nutritiva, é enfático: na mesa, a prioridade deve ser para alimentos in natura ou minimamente processados. São recomendações cada vez mais distantes da realidade dos brasileiros em uma conjuntura marcada pela insegurança alimentar e pelo descontrole de preços dos alimentos.
Os motivos para a discrepância dos preços são variados, mas para além do descontrole da inflação, um dos pontos principais diz respeito à chamada “cumulatividade tributária”, que existe no trajeto que a comida percorre entre o produtor e o consumidor.
No início do caminho, a carga de impostos é mais baixa para os alimentos minimamente processados, mas depois o cálculo muda: enquanto os produtos industrializados contam com benefícios de tributos como ICMS, IPTU e IPI, os alimentos in natura vão somando novos custos ao longo do processo.
Outros gastos ocultos, como os impostos sobre combustíveis, insumos, água ou energia, também acabam sendo repassados ao consumidor final no caso dos in natura ou com processamento mínimo. Já a comida ultraprocessada conta com mecanismos de isenção que impedem esse acúmulo de custos a cada nova etapa.
“A indústria não paga imposto sobre imposto. O que foi pago antes é descontado, e só há acréscimo sobre o valor agregado no processo. Já o agricultor não consegue descontar na mesma medida”, compara o economista Arnoldo de Campos, coautor da pesquisa O papel da tributação como propulsora da desnutrição, obesidade e mudanças climáticas no Brasil, difundida pela ONG ACT Promoção da Saúde.
O estudo da ACT destaca o exemplo do suco de uva, que não é único, mas é um dos mais gritantes dessa disparidade tributária que seduz a população a consumir alimentos vazios que pagam menos impostos. Enquanto o néctar industrializado paga cerca de R$ 1,47 em impostos por litro, o mesmo volume de suco orgânico precisa arcar com R$ 5,72, ou seja, um custo 3,89 vezes maior.
Voltada para a produção sustentável de alimentos que acabam respondendo por grande parte do abastecimento interno, a agricultura familiar paga um alto preço se comparada ao agronegócio, já que não recebe incentivos e ainda é mais tributada que a indústria.
Foto: Igor Sperotto
“São muito poucos os casos em que há uma diferenciação tributária por se tratar de alimento orgânico. Quando acontece, deve-se a casos específicos, como o estado de São Paulo, que tem um acordo com o Rio Grande do Sul que isenta as prefeituras na compra de arroz orgânico”, explica Álvaro Delatorre, do setor de produção da Cooperativa Central dos Assentamentos do Rio Grande do Sul (Coceargs), do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
Com a incidência maior de impostos sobre o cultivo da agricultura familiar, “os preços dos produtos orgânicos acompanham um nicho de mercado, na medida que tem uma parcela das pessoas em condições de pagar mais e consciência do consumo de alimentos sem veneno”, acrescenta Delatorre.
Nem mesmo as vantagens fiscais concedidas a itens da cesta básica são suficientes para conter a disparidade, pois em vários estados do país há itens menos saudáveis que também são incluídos na lista.
“No Rio de Janeiro, por exemplo, junto do arroz e feijão, existe desoneração para linguiça, salsicha, açúcar, que são produtos que deveriam ser mais tributados”, aponta a nutricionista e epidemiologista Bruna Kulik Hassan, consultora da ACT e coautora de outro estudo sobre o tema dos impostos, intitulado Tributação de bebidas e alimentos não saudáveis no mundo: experiências internacionais e seus impactos.
Isenções de R$ 4 bilhões por ano para a indústria
Foto: Tânia Rêgo/ Agência Brasil
Entre os principais destaques negativos dos benefícios tributários, está a indústria de bebidas açucaradas. “É o que costumamos definir como ‘mamata dos refrigerantes’”, explica Bruna Hassan. “Uma cadeia altamente incentivada, que começa na produção de insumos na Zona Franca de Manaus e conta com uma série de isenções ao longo do caminho, que chegam a R$ 4 bilhões por ano.”
As desigualdades que dificultam o acesso a uma alimentação saudável são as mesmas que favorecem o consumo de ultraprocessados. Além de pagar mais impostos e não contar com isenções, a produção da agricultura familiar é impactada pela queda na produção devido à estiagem, diferentemente do agronegócio; esvaziamento de políticas públicas, falta de financiamento. E pela inflação descontrolada que favorece o consumo de alimentos industrializados.
“Nos últimos 15 anos, a inflação foi puxada principalmente pelos alimentos. E os que mais subiram entre eles foram justamente os in natura ou minimamente processados. Entre os 20 itens com maior alta de preços no período, nenhum é ultraprocessado: ao contrário, eles variam dentro da média da inflação ou até abaixo”, acrescenta Campos. “Hoje, você vê um cenário em que os alimentos mais saudáveis se tornam mais caros, e a população mais pobre acaba tendo que recorrer aos menos saudáveis”, aponta.
A situação já vai além do consumidor individual. Em agosto, o governo federal vetou o reajuste aprovado pelo Congresso Nacional dos recursos repassados aos estados e municípios para a merenda escolar e que estão congelados há cinco anos. No mês seguinte, a rede pública de ensino em mais de um estado passou a oferecer biscoitos e suco de maracujá às crianças, como a escola Francisca Mendes Guimarães, no sertão baiano. Com apenas R$ 0,36 por refeição de aluno do ensino fundamental, produtos naturais e nutritivos foram retirados da dieta nas escolas e substituídos por bolachas industrializadas, pipoca e suco em pó.
Enquanto isso, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que destinava produtos da agricultura familiar a comunidades vulneráveis e escolas públicas, teve seu orçamento cortado de R$ 840 milhões em 2012 para R$ 60 milhões em 2020. Extinto e substituído pelo Alimenta Brasil, o programa recebeu R$ 2 milhões em 2022.
Iniciativas no Congresso Nacional
Não faltam iniciativas para reduzir a desigualdade na tributação, que beneficia setores como o mercado de bebidas açucaradas, mas os projetos avançam lentamente no Congresso Nacional, devido à atuação de parlamentares interessados em manter tudo como está.
O PL 1755, do deputado federal Fábio Ramalho (PV-MG), por exemplo, pleiteia a proibição da venda de refrigerantes em instituições de ensino da educação básica, mas já conta 15 anos desde a proposta original.
Já o PL 2183, apresentado pelo senador Rogério Carvalho (PT-SE) em 2019, tramitou mais rapidamente e, no primeiro semestre deste ano, entrou em análise pela Comissão de Assuntos Econômicos do Senado. Propõe uma tributação especial para refrigerantes produzidos no Brasil ou importados, aplicando os recursos na saúde.
Em agosto deste ano, apesar do intenso lobby da indústria, foram cortados incentivos de IPI para a produção de xaropes e concentrados de refrigerantes na Zona Franca de Manaus.
Ultraprocessados e fome
Foto: ACT/Divulgação
Arnoldo de Campos destaca a importância de uma tributação diferenciada, que funcione como um regulador da fabricação de comida processada e gere receitas para reverter os danos que esses alimentos provocam na saúde da população.
“Temos dois fenômenos muito fortes acontecendo no país: por um lado, a retomada da fome, com 33 milhões de brasileiros sem comida no dia a dia; por outro, um aumento das doenças crônicas não transmissíveis, como diabetes, hipertensão, doenças cardiovasculares e vários tipos de câncer, que se relacionam ao consumo de alimentos de má qualidade nutricional”, ilustra o economista. Como a indústria se beneficia de isenções, consegue seduzir os consumidores pelo preço final. Quem paga a conta é a saúde pública. “Entre 2003 e 2019, o número de pessoas com obesidade e sobrepeso dobrou”, explica Campos.
“O setor sempre alega que terá enormes perdas, mas o que se vê em exemplos como o da Filadélfia (Estados Unidos) ou o do México é que não haveria perdas econômicas de maneira geral, muito pelo contrário: acontece uma redistribuição na economia, um deslocamento e aumento de empregos em outros setores produtivos e um aumento na arrecadação e no PIB”, contrapõe Bruna Hassan.
Cesta básica saudável
Foto: Armazém do Campo/ MST
Para os pesquisadores, o desafio é garantir que a revisão dos tributos opere como uma espécie de gangorra, com um lado subindo, enquanto o outro tem reduções. Não adianta aumentar o imposto sobre os ultraprocessados se os alimentos saudáveis continuarem acumulando custos.
“É preciso construir um conceito de cesta básica saudável, privilegiando ingredientes naturais e aumentando o incentivo se o produto for orgânico ou agroecológico, de modo que o produtor de alimentos saudáveis tenha compensações para os custos que ele hoje não tem como descontar”, propõe Campos, que considera o estudo feito pela ACT como um ponto de partida para diagnosticar o problema e apresentar alternativas para o novo Congresso que tomará posse em 2023.
A regulação da publicidade de ultraprocessados, especialmente os que têm como público-alvo as crianças, é o caminho para reduzir o desejo de consumo, assim como o incentivo à agricultura familiar, alerta Bruna. “Tributação é uma forma de proteção: se os produtos mais saudáveis forem mais baratos, teremos uma redução no consumo dos ultraprocessados. Mas, sozinha, ela não é bala de prata”, constata.
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