Suicídio infantojuvenil: questão de saúde pública
Foto: Igor Sperotto
O suicídio é a quarta principal causa de morte na faixa etária entre 15 e 29 anos, mas o número de crianças de 5 a 14 anos que atentam contra a própria vida no Brasil e no mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), não para de crescer. O RS é o estado com maior número de suicídios do país. Na capital gaúcha, onde a taxa de suicídios por 100 mil habitantes é superior à do estado, profissionais da saúde denunciam o desmonte das políticas e das estruturas de saúde para a prevenção e o acolhimento que poderiam salvar vidas
Em Porto Alegre, dados epidemiológicos mostram que, de 2017 a 2021, foram 5.444 tentativas de suicídio. Dessas, 3.686 foram pessoas do sexo feminino (67%), sendo que a faixa etária que mais predominou foi dos 10 aos 29 anos (56,3%). Já os jovens com idades entre 15 e 19 anos são a população que mais busca atendimentos na Atenção Primária à Saúde em decorrência de tentativa de suicídio. E a faixa etária de 20 a 24 anos é o segundo grupo que mais atenta contra a própria vida na capital gaúcha.
Mesmo com esse quadro, Porto Alegre não dispõe de um Plano de Prevenção ao Suicídio, ação recomendada pelo Plano Estadual de Promoção da Vida e Prevenção do Suicídio 2022-2025, do governo estadual.
O Rio Grande do Sul é o estado com o maior número de suicídios do país. São 12,4 mortes a cada 100 mil habitantes. A taxa registrada na capital gaúcha em 2021 superou a média estadual, atingindo a marca de 14,72 por 100 mil habitantes.
Dados da Secretaria Municipal da Saúde (SMS) de Porto Alegre mostram o tamanho do desafio colocado por esses indicadores às autoridades em saúde: em junho de 2021, 3.048 pacientes aguardavam na fila por uma consulta em saúde mental adulto e pediátrico. Em junho de 2023, esse número quase triplicou, atingindo 8.513 pacientes na fila de espera.
Profissionais da saúde denunciam o desmonte das políticas e das estruturas de saúde mental em Porto Alegre
Realidade subnotificada
Entre 2001 e 2022, foram 1.989 óbitos por suicídio em Porto Alegre. A faixa etária predominante é entre 20 e 29 anos (20,6%), seguida por 30 aos 39 anos (20,2%).
Porém, os dados estão longe de revelar a realidade. Estima-se que a cada suicídio de um adulto, há 10 ou 20 tentativas. No caso das crianças, é uma situação consumada a cada 300 iniciativas. Muitos casos também são associados a acidentes, o que dificulta a precisão estatística.
Em 2021, ainda na pandemia, a pergunta “Como se matar sem sentir dor?” foi 70% a expressão mais procurada no Google, de acordo com o Google Trends.
Mudou a orientação de que falar sobre suicídio pode estimular as mortes. Calar não ajuda. Tratar do tema com responsabilidade é o mais indicado, apontam especialistas.
Falar da dor é um direito
É falsa a ideia de que as pessoas que ameaçam só estão querendo chamar a atenção. A tentativa de suicídio é um pedido de ajuda, explica a psicóloga Maria Alzira Grassi, especialista em Intervenção Psicanalítica na Clínica de Crianças e Adolescentes pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs). “É preciso ser ouvido para diminuir a angústia”, ressalta.
De acordo com a psicóloga, a escuta salva vidas. “O importante na prevenção do suicídio é falar da sua dor. Ter a chance de elaboração, ter ajuda, o direito ao tratamento. Não se isolar para não cristalizar o adoecimento”, pontua a profissional. O preconceito social e a desinformação de que é ‘coisa pra louco’ retardam o atendimento por medo do julgamento, e o paciente agrava o quadro.
Servidora municipal, Maria Alzira integrou o Conselho Municipal de Saúde e atuou por 22 anos, entre 2000 e 2022, no Plantão de Emergência em Saúde Mental do Pronto Atendimento Cruzeiro do Sul (Pacs). Ela destaca o benefício do acesso rápido a um profissional de saúde mental quando se entra em sofrimento psíquico. Mas esse atendimento nem sempre acontece a tempo.
Dificuldade no atendimento
A insuficiência de estruturas públicas para prestar esse atendimento é alarmante, de acordo com educadores, profissionais em saúde, em assistência social e conselheiros tutelares.
“São mortes que poderiam ser evitadas com prevenção e acolhimento. O grave é perceber que há um projeto para deixar morrer. Não está se fazendo nada para mudar o quadro. É um grande faz-de-conta. Uma maquiagem”, desabafa a conselheira tutelar Terezinha Vergo, que trabalha no centro da capital. Colegas dela nas periferias sentem essa impotência de forma mais aguda.
Para entrar em acompanhamento contínuo, o tempo é longo. “Há casos que demoram de dois a três anos e causam internações, violando mais direitos”, exemplifica a conselheira Alice Goulart, que atua na Restinga. Um dos casos é de uma jovem de 18 anos com reiteradas tentativas de suicídio. “A família busca encaminhamentos desde que ela tinha 14 anos. Nesse período, ela se mutilou e tentou suicídio. Só no último ano, foram três internações psiquiátricas, mas o atendimento acaba sendo somente para tratar as crises mais severas”, ilustra.
Cronologia do desmonte
Ex-integrante da Comissão de Saúde Mental do Conselho Municipal de Saúde, Grassi descreve o desmonte no atendimento à saúde mental nos últimos anos. Ainda em 2016, foi criado um Grupo de Trabalho da Infância e Adolescência que apresentou ao município sugestões para o atendimento de urgência: mais profissionais, criação de um Centro de Atendimento Psicossocial Infantojuvenil (Capsi) 3, com leitos de observação.
Abertura de atendimento de emergência no Hospital Presidente Vargas e a ampliação de Centros de Atenção Psicossocial da Infância e Adolescência também estavam entre as indicações.
No entanto, nada foi feito. A capital, que tem 1,5 milhão de habitantes, conta com apenas três Capsi. A indicação é um Capsi para cada 200 mil habitantes.
Os Caps deixaram de ter a porta aberta em 2019 e foi criado um sistema de Gerenciamento de Consultas (Gercon) nas Unidades Básicas de Saúde, em que a fila de espera é gigante. Além disso, a terceirização das Unidades de Saúde gera descontinuidade de profissionais, dificultando vínculo com o paciente.
Há apenas dois serviços de Plantão de Emergência em Saúde Mental (Pesm) na (Vila Cruzeiro e IAPI), que atendem, ao mesmo tempo, crianças e adultos, o que representa uma violação às orientações do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
“Nitidamente, houve um desmonte da política de saúde mental e mais ainda da saúde mental infantojuvenil. Ao invés de um maior investimento na promoção de saúde mental, interna-se mais. A porta giratória de hospitalizações pela falta de uma rede de serviços suficiente e articulada faz pensar no trato da saúde como mercadoria. E o ECA fica na teoria”, resume Maria Alzira Grassi, chefe do Setor de Psiquiatria e Psicologia do Hospital de Pronto-Socorro (HPS).
Ela relata ter atendido 84 pessoas que deram entrada no HPS por tentativa de suicídio em apenas um ano. Essa realidade, em que diariamente crianças e jovens atentam contra a própria vida, assusta profissionais de saúde acostumados com a rotina das UTIs. “É dilacerante”, confessa a enfermeira da UTI pediátrica do HPS Thaís Canella.
O secretário da Saúde de Porto Alegre, Fernando Ritter, reconhece que os suicídios são alarmantes. “Estamos nos organizando para diagnosticar e tratar precocemente”, responde, argumentando que assumiu o cargo há um mês. Ritter afirma que o município terá um Plano de Prevenção a Suicídios, porém não apresentou um cronograma de ações para enfrentar essa realidade.