SAÚDE

Retrocesso nas políticas para a saúde mental amplia sofrimento dos mais vulneráveis

As demandas por assistência em saúde mental quadruplicaram nos últimos 10 anos no Rio Grande do Sul, levando ao limite o adoecimento psíquico da população em situação de vulnerabilidade
Por Elstor Hanzen / Publicado em 18 de julho de 2024
Retrocesso nas políticas para a saúde mental amplia sofrimento dos mais vulneráveis

Foto: Igor Sperotto

CAPS II Cais Mental, no bairro Bom Fim, uma das duas únicas emergências em saúde mental da capital gaúcha, que tem 1,5 milhão de habitantes

Foto: Igor Sperotto

A auxiliar de limpeza desempregada Joice Dezengrini saiu às pressas com as crianças na madrugada de 3 de maio. A casa onde morava, no bairro Santo Afonso, em Novo Hamburgo, foi tomada pela enchente. Com os filhos, um menino de cinco anos e uma menina de três, ela ainda vive em um abrigo. Sobrevivem com um auxílio social de R$ 475,00 e doações. O bom senso, contudo, nem sempre prevalece. “O dono da casa está ligando para cobrar o aluguel de maio. Não temos para aonde ir”, desabafa.

Ari Rosa da Silva, 70, e a esposa também vivem no abrigo desde o início da enchente. Ele conta que retornou ao local quando a água baixou, no começo de junho, para auxiliar na limpeza, mas ainda não pôde voltar em definitivo para a casa. “A gente já tinha pouco. Agora está sem nada”, resume o aposentado que recebe um salário mínimo. “Desmoronou nosso mundo.”

O prejuízo e as perdas materiais estão expostos. Ao mesmo tempo, o reflexo psicológico da catástrofe climática vem à tona. Joice e Ari integram um grupo de 200 pessoas (no universo que chegou a 3,8 mil no abrigo da Fenac) que já receberam assistência dos profissionais da saúde mental de Novo Hamburgo, nos primeiros 50 dias de transtornos.

O psicopedagogo e coordenador do serviço no município, Germano Bota, ressalta que o atendimento psicossocial cresceu cerca de 40%, se comparado aos 50 dias anteriores. “Muitos chegaram desorientados e em choque. Depois, imaginaram que era só esperar baixar a água e voltar. Quando viram a realidade de perto, foi outro baque”, relata, acrescendo que cerca de 25% dos novos pacientes devem seguir o tratamento terapêutico e psiquiátrico por um período maior.

“Esse estresse não termina com a água baixando. Costuma ser mais grave em pessoas em situação vulnerável – financeira, social ou familiar. São perdas que geram luto, não só por vidas, mas também por histórias e coisas que morreram. E aí vem a fase pós-traumática”, pontua o professor de Neuropsiquiatria da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) Vitor Calegaro.

“Estudos internacionais mostram um aumento significativo de transtornos mentais nas pessoas diretamente atingidas por enchentes”, destaca a presidente da Associação de Psiquiatria do RS, Ana Cristina Tietzmann, referindo-se a uma pesquisa realizada na Inglaterra sobre o impacto das enchentes na saúde mental.

Misto de pandemia e tragédia da boate Kiss

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Foto: Acervo Pessoal

“São perdas que geram luto, não só por vidas, mas também por histórias
e coisas que morreram”, define Calegaro, da UFSM

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“O desastre climático trouxe uma sensação que pode ser comparada a um misto do que se vivenciou na pandemia com o sentimento provocado pela tragédia da boate Kiss. Silêncio nas ruas. Só se ouvia o som de sirenes”, relata Calegaro. Ele que participou do socorro às vítimas do incêndio – que provocou a morte de 242 jovens e deixou 636 feridos, na madrugada de 27 de janeiro de 2013, em Santa Maria.

Ele lembra que eventos como esses, assim como guerras, provocam transtorno de estresse pós-traumático (Tept) em parte das vítimas expostas à realidade, quando o problema é revivido por meio de imagens, sons, cheiros e desencadeia memórias indesejadas.

Para o especialista em neuropsiquiatria, a marca de tais acontecimentos coletivos fica nas pessoas e na comunidade, como uma cicatriz. “Isso é normal. O problema é que, em algumas pessoas traumatizadas, não se forma a cicatriz, permanece a ferida aberta. Cria-se só uma casquinha e, se não tiver um diagnóstico e tratamento corretos, não vai cicatrizar”, ressalta o professor Calegaro.

As consequências da falta de tratamento adequado são distanciamento afetivo, sentimentos negativos em detrimento dos positivos, dificuldades nos relacionamentos, por exemplo. “Sim, é um trauma forte o suficiente para desencadear quadros psiquiátricos até em quem não tinha previamente. Quem já tinha algum tipo de sofrimento mental e pessoas em situação de vulnerabilidade são mais propensas”, alerta a médica e doutora em Psiquiatria do comportamento Tamires Bastos.

Essa dor não sangra

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Foto: Acervo Pessoal

Saúde mental da população é negligenciada, afirma Dorisdaia, do Conasem

Foto: Acervo Pessoal

“A saúde mental da população ainda é negligenciada, como se o sofrimento fosse inferior ao dos outros. Ao contrário. Essa dor não sangra, mas causa muitas consequências, como isolamentos, depressão, perdas de emprego por incapacidades”, analisa a coordenadora da Comissão Nacional de Enfermagem em Saúde Mental (Conasem/Cofen), Dorisdaia Humerez.

O Censo de 2022 mostrou que há 31.141 psicólogos no RS, 45% trabalham no setor público e 77% no setor privado. “A maioria das profissionais de psicologia tem mais de um emprego”, ressalta, em nota, o Conselho Regional de Psicologia. Conforme a Secretaria de Saúde do RS, dos 497 municípios, 373 (75%) têm menos de 15 mil habitantes e, portanto, não possuem critério populacional para habilitação de Caps. “Esses especialistas ficam concentrados nos grandes centros. Esse é um problema crônico desde a época em que fiz residência, há 12 anos”, diagnostica Calegaro.

Demanda cresceu 400% em 10 anos

A Rede de Atenção Psicossocial (Raps), instituída em 2011, a qual engloba os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) e as Unidades Básicas de Saúde (UBS) e outros pontos de atenção à saúde mental, quadruplicou os atendimentos nos últimos 10 anos no Rio Grande do Sul.

No primeiro quadrimestre de 2014, foram 124.894. Em comparação com o mesmo período de 2024, o número saltou para 507.140 casos, conforme o Datasus.

Os investimentos na área estão longe de acompanhar esse ritmo. Em 2012, o estado contava com 167 Caps e hoje tem 218 desses serviços, um crescimento que não acompanhou a realidade da saúde pública. O orçamento para toda a saúde do RS aumentou apenas R$ 1,6 milhão de 2016 para 2020, ante uma inflação de 23,76% no período.

Desmonte da política de saúde mental

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Foto: Igor Sperotto

“Porto Alegre tem duas emergências de saúde mental, nenhuma com psicólogo”, aponta Maria Alzira

Foto: Igor Sperotto

Especialistas apontam um retrocesso nas políticas para saúde mental. De 1990 até 2015, houve uma política de estado que ampliou uma grande variedade de serviços na área. Nos últimos oito anos, no entanto, aconteceu um congelamento dessas políticas. Nesse período, os Caps, um braço da Rede de Atenção Psicossocial, perderam espaço para comunidades terapêuticas.

Crises como desastres climáticos e pandemia acabam deixando o problema mais evidente. Em Porto Alegre, está em curso um desmonte do sistema público de saúde mental, denuncia a psicóloga e servidora pública aposentada Maria Alzira Grassi, que trabalhou por 28 anos na rede de saúde da capital.

“Porto Alegre tem duas emergências de saúde mental, nenhuma com psicólogo. É inadmissível um município como Porto Alegre, que tem 1,5 milhão de habitantes, não ter uma equipe multiprofissional em meio a uma crise dessas”, enfatiza a psicóloga.

DADOS:

Segundo o Datasus, a capital gaúcha tinha 37 psicólogos e psiquiatras na rede psicossocial em abril de 2015. Em abril de 2024, havia 54. No estado, no mesmo período, existiam 594 em 2015 e 726 em 2024. Já Novo Hamburgo aumentou a equipe de psicólogos da Rede de Atenção Psicossocial, de 24 profissionais em 2015 para 34 neste ano.

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