SAÚDE

Caso do Rio foi um crime isolado e sistema de transplantes é seguro, dizem especialistas

Médicos alertam que a chance de um paciente morrer durante a espera por falta de um órgão é infinitamente maior do que um caso semelhante se repetir
Por Elstor Hanzen / Publicado em 18 de outubro de 2024

Caso do Rio foi um crime isolado e sistema de transplantes é seguro, dizem especialistas

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

Problema causado por um laboratório privado do Rio de janeiro no sistema de transplantes de órgãos do país é um caso isolado no universo de mais de 160 mil procedimentos de transplantes realizados desde 1997. Especialistas alertam que a chance de um paciente morrer na lista de espera por um órgão é infinitamente maior do que um caso semelhante se repetir.

À frente da Central Estadual de Transplantes de Santa Catarina desde 2005, o médico intensivista Joel de Andrade afirma que o episódio de contaminação de pacientes com HIV através de transplantes de órgãos do Rio de Janeiro é absolutamente excepcional e inédito no Brasil. O especialista, que também é responsável técnico pela coordenação geral do Sistema Nacional de Transplantes, ressalta que não há registros em Santa Catarina, no Paraná, no Rio Grande do Sul ou em qualquer outra unidade da federação de uma ocorrência anterior similar a essa.

“É muito importante destacar que todos os estados que compõem o Sistema Nacional de Transplantes têm feito constantemente esforços para melhorar, assegurando a segurança dos procedimentos”. Pela legislação em vigor desde 1997, uma bateria de exames deve ser feita para garantir a segurança dos pacientes que recebem os órgãos. Entre os testes, por exemplo, estão HIV, HTLV (vírus linfotrópico de células T humanas, que é o primeiro retrovírus humano que pode causar câncer), hepatite B, hepatite C, doença de Chagas, além de tipagem sanguínea ABO, hemograma completo, conforme o Sistema Nacional de Transplantes do SUS.

Coordenador do Sistema de Transplantes de Santa Catarina há 19 anos, Joel enfatiza que jamais viu isso acontecer no Estado e nenhum relato de que tenha ocorrido em outros estados. “Também é fundamental deixar claro que essa ocorrência, para além de qualquer questão de falha técnica, é um episódio, até onde eu conheço, em que há suspeita de um ilícito, de um crime, não é que os exames foram mal feitos”, explica o médico, se referindo ao caso do Rio que está sendo investigado pela Polícia Federal.

O Brasil tem o maior programa público de transplante de órgãos, tecidos e células do mundo. De acordo com dados do Ministério da Saúde, o Sistema Nacional de Transplantes é responsável pelo financiamento de cerca de 88% dos transplantes no país. Apenas em 2023, foram realizados 28.533 transplantes. De 2001 a 2023, o número de transplantes quase que triplicou, sendo que no primeiro ano do século o total foi de 10.422 procedimentos.

O nível de segurança dos procedimentos de transplantes de órgãos no Brasil é elevado e se compara às melhores regiões do mundo, lembra o coordenador de Transplantes de SC. “Dentro do processo de notificação de um potencial doador, depois do diagnóstico de morte encefálica, sobrepõe-se a uma fase que se chama avaliação e validação do potencial doador, no qual todos os dados clínicos realizados, aquele potencial doador específico, são colhidos e analisados”, explica o médico intensivista.

No Brasil, SC virou referência e assumiu a liderança em taxas de doação de órgãos. Pelo trabalho pioneiro realizado na área, Andrade inclusive venceu o Prêmio Espírito Público na categoria Saúde, em 2022. Ele acrescenta que o processo de doação e transplante de órgãos é complexo, mas bastante seguro. ”Gostaria de ressaltar que a finalidade primordial do Sistema Nacional de Transplantes e de cada central estadual é de tentar, com o máximo de segurança possível, buscar a solução para os pacientes que precisam de um transplante de órgãos, de células ou de tecidos para melhorar a sua vida. Lamentavelmente, essa atividade não é isenta de riscos. Por isso, é necessário todo esforço para mitigar os riscos de transmissão de doenças sempre”.

Caso do Rio foi um crime isolado e sistema de transplantes é seguro, dizem especialistas

Foto: Ministério da Saúde/Divulgação

Foto: Ministério da Saúde/Divulgação

Maior risco é na fase de espera por um órgão 

É infinitamente maior o risco de um paciente morrer esperando um transplante do que receber um órgão, compara Valter Garcia, presidente do Conselho Consultivo da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos. O médico lembra que desde a legislação de 1997, a qual regula os transplantes, mais 160 mil pessoas já foram beneficiadas com um novo órgão no país e, portanto, ganharam melhor qualidade de vida ou uma sobrevida.

“Nesse período, não tivemos nenhum registro de órgão doente transplantado, exceto o do Rio agora. Enquanto isso, cerca de 20% dos que na lista de espera por um coração, por exemplo, acabam morrendo antes de conseguirem um doador. Por isso, o risco de um paciente morrer por não conseguir um doador é incomparavelmente maior do que o caso como o do Rio de Janeiro se repetir”, assegura Garcia.

Em todo o país, 44.816 pessoas esperam pelo transplante de um órgão. A maior parte, 41.423, está na lista por um rim. O fígado aparece em segundo lugar, com fila de 2.321 pessoas, seguido pelo coração, com 436. São Paulo é estado com o maior número de pessoas que aguardam um transplante, 21.601.

Em janeiro deste ano, segundo a secretaria de Saúde do RS, havia no Estado 2.578 pacientes à espera de um transplante. A maior lista de espera era para um transplante de rim, com 1.228 pessoas. Outras 1.110 aguardavam um transplante de córnea, enquanto 162, um transplante de fígado, 63 de pulmão e 15 de coração. No Rio de Janeiro, há 2.157 na lista de espera.

Diante de tudo, o médico Joel Andrade reforça ser fundamental que se pesquise, procure de forma mais séria, mais empenhada possível a detecção de qualquer complicação antes, durante e após um procedimento de transplante. “Nós trabalhamos para melhorar a vida das pessoas, e é muito ruim quando, ao tentar melhorar a vida, acaba-se criando uma crise como essa. É um problema adicional para as pessoas que precisam”.

Controle de qualidade e serviço público

No RS, por exemplo, não há serviços de laboratórios independentes para a realização das sorologias de rastreamento de doenças infectocontagiosas nos potenciais doadores. O chefe da Divisão de Transplantes do RS, Rogério Caruso, afirma que esses exames são feitos nos laboratórios dos hospitais onde são realizados os processos de diagnósticos de morte encefálica.

“Caso esses laboratórios não tenham condições de executar o teste em tempo hábil, que é curto quando se trata de transplantes, as amostras de sangue são levadas para laboratórios de referência, como o da Santa Casa de Porto Alegre, por exemplo”, destaca Caruso.

“Nossa legislação garante a lisura e segurança do processo, com rotinas de exames e procedimentos obrigatórios, além da fiscalização de estabelecimentos e equipes. Mas cada ente federativo tem autonomia na execução das ações no âmbito da gestão estadual”, recorda Caruso.

Para o chefe da Divisão de Transplantes do RS, acontecimentos indesejáveis como os do Rio, apesar de catastróficos, “servem para revisarmos nossos procedimentos e aumentar cada vez mais a segurança e vigilância. Mesmo considerando não serem necessários procedimentos adicionais, certamente nos serve de alerta para renovar o rigor da fiscalização”, conclui.

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