SAÚDE

Epidemia de drogas psiquiátricas veio da mercantilização do bem-estar

Inspirados na Reforma Psiquiátrica, especialistas pedem retirada dos fármacos da vida dos pacientes e propõem nova revolução nos tratamentos
Por Elstor Hanzen / Publicado em 17 de dezembro de 2024

Epidemia de drogas psiquiátricas veio da mercantilização do bem-estar

Foto: FreePik editado por EC com IA

Foto: FreePik editado por EC com IA

A proposta foi debatida no 8º Seminário Internacional A Epidemia das Drogas Psiquiátricas, promovido pela Fiocruz no começo de dezembro. A mudança  proposta pelos cientistas é radical: a retirada dos fármacos da vida dos pacientes e mudar um paradigma da saúde de forma tão inovadora quanto foi a Reforma Psiquiátrica brasileira, considerada uma referência de avanço nos tratamentos de saúde mental. Paralelamente, especialistas afirmam que os medicamentos psiquiátricos, em geral, são mal administrados.

Em síntese, assim como foi a Reforma Psiquiátrica no Brasil no século passado, que acabou com os manicômios e trouxe um outro modelo de atenção e cuidado à saúde junto ao SUS, agora cientistas querem dar outro passo decisivo, retirar as drogas psiquiátricas da assistência, a fim de mudar o paradigma da medicalização da saúde.

O debate ocorreu nos dias 5 e 6 de dezembro, na Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz). Segundo os especialistas da área, o tema é fundamental e um desafio porque visa superar a mercantilização da medicalização e da vida.

Para o mestre em Saúde Coletiva Artur Cardoso, “é preciso compreender o que há por trás desta alta incidência do consumo de drogas psiquiátricas. A psiquiatria, por exemplo, critica os manicômios, mas não fala sobre o mercado da saúde mental”. Ele ressalta que a indústria do bem-estar e saúde mental movimentou 4,4 trilhões de dólares, somente no ano de 2019.

Cardoso enfatiza que atualmente se vende a ideia de que o indivíduo pode “comprar/adquirir” saúde mental e bem-estar. “E por trás disso há uma indústria farmacêutica muito forte, aliada a uma psiquiatria que segue as diretrizes de mercado. O modelo de mercantilização é o modus operandi da psiquiatria contemporânea. A indústria farmacêutica injeta bilhões de dólares na produção cada vez maior de características diagnósticas, que são usadas arbitrariamente, vendendo drogas como tratamento. Eles vendem efeito como tratamento, e esse é um processo ininterrupto de corrupção”.

O pesquisador emérito da Ensp, idealizador e coordenador do seminário internacional, Paulo Amarante salientou ser necessário fortalecer os processos formativos críticos, além dos mecanismos de diálogo com a sociedade. Segundo ele, o Brasil retirou milhares de pessoas dos manicômios e seguirá na luta para a retirada dos psicofármacos. “É um processo coletivo, de ajuda mútua, com muita cooperação e coletividade, jamais esquecendo da arte e da cultura como processos formativos e uma forma de estar no mundo”, disse.

Epidemia de drogas psiquiátricas veio da mercantilização do bem-estar

Foto: Ensp-Fiocruz/Instagram

Em mesa redonda no 8º Seminário Internacional A Epidemia das Drogas Psiquiátricas, coordenada pelo pesquisador Paulo Amarante (em pé), foi discutido o panorama internacional sobre as iniciativas e os desafios da retirada de drogas psiquiátricas

Foto: Ensp-Fiocruz/Instagram

Número de tipos pulou de 128 para 541    

Quando publicado em sua primeira versão, em 1952, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) continha 128 categorias para a descrição de modalidades de sofrimento psíquico. Em 2013, em sua última versão, apresentava 541 categorias. Os dados saíram de uma pesquisa do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise (Latesfip/USP) e foram divulgados pelo professor de filosofia na USP Vladimir Safatle, um dos autores do livro Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico.

Em 60 anos, 413 novas categorias foram “descobertas”. “Não há nenhum setor das ciências que tenha conhecido um desenvolvimento tão anômalo e impressionante desde o fim do degelo da era glacial. Claro que isso não indica ‘salto tecnológico’ algum. Não havíamos negligenciado por séculos 413 categorias clínicas. Antes, demos autorização cada vez mais extensa para a intervenção médica em meandros da vida que até então não eram vistos como campos possíveis de comportamento patológico”, avalia Safatle no artigo A era de crise psíquica fabricada.

Segundo o professor e pesquisador, isso ocorre porque vivemos uma forma de vida que fabrica a crise psíquica. “Deixe-me salientar esse ponto: estamos a falar de “saldo normal”, ou seja, não há como os nossos processos de socialização e reconhecimento social não produzirem tal aumento cada vez mais exponencial de sofrimento psíquico. Para se ter uma ideia, apenas no Brasil, esse laboratório mundial do neoliberalismo autoritário, atualmente 13,5% da população foi diagnosticada com transtorno depressivo, e 9,7% com transtorno de ansiedade. Uma maneira de interpretar tais dados é dizer que eles mostram como ser um Eu atualmente é insuportável”, escreve.

Drogas mal-usadas

A médica psiquiatra e doutora em Psiquiatria e Ciências do Comportamento Tamires Bastos explica que há algumas frentes, ou movimentos, que fizeram com que o uso de drogas psiquiátricas fosse crescer. Entre eles, diagnóstico mais acurado, acesso facilitado e rotinas estressantes.

“Às vezes, precisa de tudo um pouco. Aí vem a indicação de uma avaliação acurada para não cair nestes dois erros: deixar de oferecer um recurso que poderia, inclusive, ajudar a pessoa a ter forças para mudar a sua condição de vida. Ao mesmo tempo, não colocar o medicamento numa questão que claramente não vai funcionar, não tem indicação”, ressalta Tamires, que também é professora de medicina na Unisinos.

Além disso, destaca que há aqueles medicamentos que têm funcionamento análogo ao álcool, viciando o cérebro. “Eles têm toxicidade do álcool, sendo indicados para algumas situações específicas por tempo limitado, que são os “diazepam” da vida (rivotril, valium, ritalina). Estas muitas vezes as pessoas abusam, conseguem ilegalmente”, afirma a médica. Por alguns serem estimulantes, usam para tentar aumentar a performance no trabalho e nos estudos. As pessoas acabam abusando dessa medicação. “Aí tem a interface com as questões sociais, com a expectativa de produtividade”, completa.

Conforme a OMS, o Brasil tem uma das prevalências mais altas de ansiedade do mundo. “É possível que tenha aumentado a busca por esses medicamentos que relaxam imediatamente, mas que têm esse ônus de um uso crônico, tornar a pessoa dependente e propensa à depressão ou a algum problema de memória durante o uso”, alerta a psiquiatra.

Por outro lado, a médica avalia que há falta de acesso a medicamentos psiquiátricos para quem de fato precisa, como pacientes atendidos pelo SUS. “Importante dar o panorama das duas coisas: a gente tem um uso abusivo, uma distorção de uma expectativa sobre o que o remédio é capaz de fazer, um desvio do foco de problemas que são sociais”; salienta.

Ao mesmo tempo, há “pessoas que deveriam usar um medicamento para melhorar a sua condição, para conseguir viver bem, sequer conseguem o diagnóstico do problema”. Ela ainda ressalta ser importante diferenciar as duas situações para evitar estigmas, já que todo medicamento é ruim em si.

Epidemia de drogas?

Devido ao crescente número de diagnósticos e prescrição de remédios psiquiátricos na população, tanto no mundo como no Brasil, a Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) realizou o seminário Epidemia das Drogas Psiquiátricas no início deste mês. O evento debateu as dificuldades e desafios no processo de desmedicalização e desprescrição.

Por meio de nota, o Ministério da Saúde (MS) afirma que “a epidemia é caracterizada pela elevação brusca, inesperada e temporária da incidência de uma doença, ultrapassando os valores esperados para a população em um determinado período. Importante destacar que a epidemia se refere a doenças e não a questões relacionadas ao uso de medicamentos”.

A Pasta também disse que a Política Nacional de Assistência Farmacêutica, que é uma diretriz do Sistema Único de Saúde (SUS), tem como princípio fundamental o uso racional de medicamentos, que compreende a prescrição apropriada. Dentro destas condições, estão a disponibilidade oportuna e acessível, a dispensação em condições adequadas e o consumo nas doses indicadas, nos intervalos definidos e no período de tempo indicado de medicamentos eficazes, seguros e de qualidade.

“O Ministério da Saúde, em colaboração com as secretarias de saúde estaduais e municipais, tem desenvolvido diversas estratégias de qualificação dos profissionais da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) do SUS para aprimorar suas competências: prescrição de psicofármacos quando realmente necessário e desenvolvimento de outras abordagens não farmacológicas, como intervenções psicossociais, que são parte fundamental do tratamento”, diz em outra parte do comunicado.

Ainda conforme o MS, as causas do sofrimento mental são multifatoriais em sua maioria, envolvendo questões sociais diversas. “Em nenhuma hipótese os medicamentos devem ser usados para finalidades alheias à necessidade clínica. Os serviços de saúde mental vinculados ao Ministério da Saúde atuam na perspectiva da ‘atenção integral’ à saúde o que, por fundamento, considera o conjunto de determinantes e determinações sociais do processo saúde-doença-cuidado”, finaliza.

Brasil é o país mais ansioso do mundo

Associação brasileira de psiquiatria ( https://www.abp.org.br/post/jph09-rename )

O Brasil ocupa a primeira posição em número de pessoas com casos de transtornos de ansiedade do mundo. São cerca de 19 milhões de casos, que correspondem a aproximadamente 9% da população. Além disso, ocupa o 2º lugar no mundo e o 1º na América Latina em pessoas com quadros depressivos. Com a chegada da quarta onda, estima-se que estes números aumentem significativamente. Os dados são da Associação brasileira de psiquiatria .

Comércio aumentou com a pandemia

Levantamento feito pelo Conselho Federal de Farmácia (CFF) com base nos dados da Consultoria IQVIA, mostra que a venda de antidepressivos e estabilizadores de humor disparou no Brasil a partir da pandemia de covid-19. Comparando as vendas em 2019, ano anterior à emergência de saúde pública, com as de 2022, o número de unidades comercializadas desses medicamentos aumentou de 82.667.898 para 112.797.268, ou seja, 36%. Os estados campeões em aumento foram Bahia, Paraíba e Maranhão, com porcentuais que variaram de 62% a 57%. Os menores aumentos foram verificados no Paraná, Rondônia e Rio Grande do Sul, com índices de 29% nos dois primeiros e 19% no último. Os dados levantados são de 2017 a 2022, dividido por estado e separado por tipo de medicamento.

Drogas mais receitadas

Dados de pesquisa na Anvisa com base nos principais psicotrópicos através do uso das receitas controladas apontam medicamentos com maior número de prescrições médicas entre 2019 e novembro de 2021:

Medicamentos psiquiátricos para depressão: Fluoxetina, Escitalopram, Mirtazapina e Citalopram.

Medicamentos psiquiátricos para ansiedade: Diazepam, Bromazepam, Alprazolam, Lorazepam,

Medicamentos psiquiátricos antipsicóticos: Clozapina, Amissulprida, Quetiapina, Risperidona

Panorama da saúde mental

Panorama da Saúde Mental no Brasil feito pelo Instituto Cactus, entidade filantrópica ligada à promoção do bem-estar psíquico, junto à AtlasIntel, empresa especializada em pesquisas e dados. As instituições criaram o Índice Instituto Cactus-Atlas de Saúde Mental (iCASM), um novo indicador para monitorar o tema no país a cada seis meses.

Lançado em agosto de 2023, o objetivo do Panorama da Saúde Mental é sensibilizar a sociedade em relação ao tema, combater estigmas e oferecer subsídios para a produção de conhecimento acadêmico e científico, para fomentar a inovação no campo e também apoiar na formulação e implementação de políticas públicas mais eficazes.

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