SAÚDE

HIV/Aids: corte de financiamento dos EUA coloca milhões de pessoas em risco

Médicos Sem Fronteiras alerta que congelamento de recursos determinado pelo governo norte-americano já tem efeitos negativos para diferentes projetos de tratamento e prevenção no mundo
Da Redação / Publicado em 14 de fevereiro de 2025
HIV AIDS corte de financiamento dos EUA coloca milhões de pessoas em risco

Foto: Diego Baravelli/MSF

Congelamento do Plano de Emergência para o alívio da Aids (Perfar) juntamente com a suspensão de todas as outras iniciativas de ajuda externa por pelo menos 90 dias, teve efeitos imediatos sobre as pessoas que vivem com HIV

Foto: Diego Baravelli/MSF

A decisão do governo nort-americano de congelar temporariamente o financiamento do Plano de Emergência do Presidente dos Estados Unidos para o Alívio da Aids (Pepfar, na sigla em inglês), juntamente com a suspensão de todas as outras iniciativas de ajuda externa por pelo menos 90 dias, teve efeitos imediatos sobre as pessoas que vivem com HIV, declara Médicos Sem Fronteiras (MSF). Embora os EUA tenham esclarecido que certos programas de tratamento podem continuar até abril, estamos preocupados que elementos críticos do Pepfar permaneçam congelados.

“Mais de três semanas desde que o governo dos EUA congelou o financiamento do Pepfar, ainda há confusão e incerteza generalizadas sobre o corte desse programa vital para milhões de pessoas”, diz Avril Benoît, diretora-executiva de MSF nos EUA. “Apesar de haver exceções limitadas que abrangem algumas atividades, o que nossas equipes estão vendo em muitos dos países onde trabalhamos é que as pessoas já perderam o acesso a cuidados essenciais e não têm ideia se ou quando seu tratamento continuará. MSF está pedindo ao governo dos EUA que retome imediatamente o financiamento para toda a gama de operações do Pepfar, bem como para outras questões críticas de saúde e ajuda humanitária.”

Em 1º de fevereiro, após mais de uma semana de caos e congelamento das atividades, o governo dos EUA emitiu uma normativa prevendo exceções limitadas que em tese permitiriam a retomada de alguns programas com orientações específicas para o HIV. No entanto, essa orientação não era clara e não chegou imediatamente às equipes dos países do Pepfar. Em toda a nossa ampla rede de atuação, MSF não viu uma única organização que tenha sido capaz de retomar o trabalho como resultado dessa orientação. Em 6 de fevereiro, o governo dos EUA emitiu uma diretriz mais clara sobre os programas de Prevenção da Transmissão de Mãe para Filho (PMTCT, na sigla em inglês).

No entanto, continuamos preocupados. As principais áreas de prevenção, tratamento, cuidados e apoio relacionadas ao HIV não estão inclusas nesta diretriz adicional – como profilaxia pré-exposição (PrEP) para todos os grupos em situação de vulnerabilidade, intervenções específicas para adolescentes e mulheres jovens em países com alta prevalência de infecções pelo HIV e programas de monitoramento liderados pela comunidade. Esses serviços são essenciais para garantir uma resposta bem-sucedida à epidemia.

Embora MSF não aceite financiamento do governo dos EUA e não seja diretamente afetada por cortes ou congelamentos no Pepfar, muitas de nossas atividades dependem dos programas que foram interrompidos. Em alguns lugares, tivemos que nos adaptar e mudar nossas atividades. Os efeitos indiretos desses congelamentos já foram sentidos em nossos projetos em várias partes do mundo.

Na África Subsaariana, onde administramos vários projetos para pessoas vivendo com HIV/Aids e programas de saúde relacionados, já estamos testemunhando impactos nos pacientes que atendemos.

Na África do Sul, muitas clínicas que fornecem serviços relacionados ao HIV – incluindo testes, tratamento e PrEP – por meio de organizações financiadas pelo Pepfar, foram fechadas, causando confusão e angústia nas pessoas, que agora não sabem onde acessar seus medicamentos essenciais.

Em Moçambique, uma importante organização parceira de MSF que fornecia serviços abrangentes relacionados ao HIV teve que interromper completamente as atividades.

No Zimbábue, a maioria das organizações que oferecem cuidados para pessoas vivendo com HIV também parou de funcionar, interrompendo, em particular, o programa Dreams, que visa diminuir novas infecções por HIV em meninas adolescentes e mulheres jovens.

“Qualquer interrupção nos serviços e tratamento da infecção por HIV é profundamente angustiante para as pessoas sob cuidados e uma emergência quando se trata de tratamento”, constata Tom Ellman, diretor da Unidade Médica da África do Sul de MSF na África Austral. “Os medicamentos para a infecção por HIV devem ser tomados diariamente, do contrário as pessoas correm o risco de desenvolver resistência ou complicações de saúde mortais.”

Na República Democrática do Congo, o congelamento da ajuda já estava afetando o modelo mais bem-sucedido de distribuição de medicamentos antirretrovirais já implementado na capital, Kinshasa: os pontos de distribuição gratuita e de apoio a parceiros administrados pela comunidade, conhecidos localmente como “PODIs”. Em um país onde o estigma contra as pessoas que vivem com HIV é enorme e a pobreza continua sendo uma barreira para acessar os cuidados, os PODIs provaram ser uma abordagem medicamente necessária para lidar com atrasos ou abandono da terapia.

Com os pontos de atendimento apoiados pelo Pepfar agora fechados e outras atividades congeladas, milhares de pessoas ficaram sem apoio e com alto risco de desenvolver Aids. As equipes de MSF que apoiam o tratamento avançado da doença pelo HIV em Kinshasa podem não ser capazes de atender ao aumento da demanda se as interrupções persistirem.

No Sudão do Sul, aproximadamente 51% das pessoas que vivem com HIV sabem sobre seu status e 47% estão em tratamento. A descontinuação deste programa terá efeitos devastadores para milhares de pessoas e suas comunidades. MSF trabalhou ao lado do Pepfar fornecendo cuidados essenciais para pessoas vivendo com HIV neste contexto e viu em primeira mão como este programa salva vidas. O apoio do Pepfar no Sudão do Sul é fundamental.

Os projetos apoiados pelo Pepfar estão profundamente interligados e dependem de outros componentes do sistema de ajuda externa dos EUA, principalmente do apoio à implementação fornecido pela Usaid e da assistência técnica e de outra natureza oferecida pelos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA. O congelamento da ajuda externa e as ordens de interrupção do trabalho continuam a afetar essas outras agências, e seus funcionários foram colocados em licença imediata ou realocados. Não está claro quando e como até mesmo as atividades limitadas permitidas poderão ser reiniciadas.

“Essas interrupções custarão vidas e reverterão anos de progresso contra esse vírus”, disse Benoit. “Cada dia que passa é uma emergência para milhões de pessoas para as quais o Pepfar é vital.”

Os programas apoiados pelo Pepfar foram fortemente integrados em aspectos-chave dos sistemas de saúde mais amplos dos países parceiros nos últimos 20 anos ou mais. Como resultado, as consequências dessas interrupções foram de longo alcance. Por esta razão, alguns dos serviços afetados vão além do tratamento e da prevenção da infecção por HIV, como em Uganda, onde aspectos da vigilância e resposta a doenças infeciosas financiados pelo Pepfar, incluindo o vírus Ebola, foram interrompidos.

O Brasil teve uma participação importante para permitir o uso pioneiro dos antiretrovirais em MSF, com fornecimento de medicamentos à África do Sul no início dos anos 2000. “Quando MSF começou a tratar pessoas vivendo com HIV/Aids na África do Sul, há 25 anos, não havia medicamentos antirretrovirais nas prateleiras, cada diagnóstico parecia uma sentença de morte e as comunidades tentavam desesperadamente conter a propagação do vírus”, diz Ellman. “É essencial que as pessoas atendidas pelo Pepfar continuem tendo acesso aos tratamentos necessários”, reforça a diretora-executiva de MSF-Brasil, Renata Reis.

Durante mais de duas décadas, o apoio do Pepfar tem ajudado a salvar mais de 25 milhões de vidas e incentivado que a luta contra o HIV seja verdadeiramente global. Mas o sucesso contínuo depende do acesso permanente a toda a gama de programas, cuidados e bens relacionados ao HIV, incluindo serviços de tratamento e prevenção, programas específicos e direcionados à população, projetos relacionados à violência de gênero e outras áreas críticas.

“Mesmo interrupções temporárias dos principais componentes do Pepfar prejudicam as pessoas em risco de contrair o HIV e as pessoas que vivem com o HIV”, diz Benoît. “Apelamos ao governo dos EUA para que retome imediatamente todo o financiamento de ajuda humanitária e de saúde crítica, incluindo toda a gama de operações do Pepfar.”

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