Foto: Igor Sperotto
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O Jornal Extra Classe entrevistou o coordenador nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), Guilherme Castro Boulos, um pouco antes de uma aula aberta ministrada por ele sobre ocupações, no prédio do Departamento Municipal de Habitação (Demhab), em Porto Alegre, até então ocupado por militantes do movimento. Menos de 24 horas depois, no dia 11 de agosto, cerca de 40 policiais cumpriram o mandado de reintegração de posse para a prefeitura de Porto Alegre, após uma tentativa fracassada no dia 2. O prédio estava ocupado desde 14 de julho. Boulos é formado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), onde ingressou em 2000, e especializado em Psicologia, disciplina que leciona atualmente em uma instituição particular de ensino em São Paulo (não divulgada, segundo o MTST, por questão de segurança e privacidade). Militou no movimento estudantil na década de 1980 e ingressou no MTST em 2002. Denominado “coxinha revolucionário” e “radical chique” pelo colunista da Veja Reinaldo Azevedo, Boulos ficou mais conhecido a partir de 2014, por conta dos protestos contra a Copa do Mundo no Brasil, em especial a ocupação denominada Copa do Povo, promovida pelo MTST no início de maio daquele ano. Em junho do mesmo ano, tornou-se colunista semanal do site do jornal Folha de S. Paulo. Em fevereiro de 2015, passou a integrar, junto com o deputado federal Jean Wyllys (PSol/RJ) e a jornalista Laura Capriglione, o programa de debates Havana Connection, criado e mediado pelo jornalista Leonardo Sakamoto, no portal do UOL, em contraponto ao Manhattan Connection, exibido atualmente no canal Globo News.
Extra Classe – Por que ocupar?
Guilherme Boulos – As pessoas veem e constroem uma visão preconceituosa das ocupações. Na realidade, isso é produto de um déficit histórico das cidades brasileiras no atendimento aos direitos básicos, no atendimento do povo mais pobre. O tema da moradia é um dos mais graves do nosso país, e a capacidade de resposta do poder público é sempre muito limitada. A ocupação do Demhab é ilustrativa nesse sentido. Há 28 dias, dezenas de pessoas ficaram acampadas, reivindicando um direito básico à moradia. Ninguém está reivindicando um privilégio. As pessoas querem o direito de morar, de serem inseridas em um programa social.
EC – Qual é o sentido das ocupações de prédios e áreas públicas?
Boulos – Essas ocupações de prédios públicos têm o objetivo de pressão. Ninguém quer morar nesses prédios. Mas se exige do poder público que construa uma política habitacional com o mínimo de funcionamento e de capacidade de atendimento de quem mais precisa. As ocupações nos últimos anos aumentaram consideravelmente no Brasil, tanto aqui em Porto Alegre, como em São Paulo, no Rio de Janeiro, Belo Horizonte, também em Fortaleza e em outras grandes cidades brasileiras. Isso tem a ver com as nossas cidades, que têm se tornado, cada vez mais, verdadeiras máquinas de criar sem-tetos.
Ocupar é a alternativa para 6 milhões de trabalhadores from Extra Classe on Vimeo.
EC – Qual é o cenário que provoca novas ocupações e qual a demanda reprimida de moradias?
Boulos – O que nós tivemos nos últimos dez anos no país foi um verdadeiro surto de especulação imobiliária poucas vezes visto em nossa história recente. Nas principais capitais, aumentou o nível de valorização de 2008 para cá, que é quando o mercado imobiliário começou a crescer de uma forma incrível. A valorização passa, em muitos casos, de 200%. No Rio, foi 260%. Isso tem a ver com o período de abundância de crédito imobiliário com subsídio para a construção civil. Porém, o problema não é o crédito, o problema é que o mercado está completamente desregulado. As construtoras são as donas das cidades e fazem o que querem e onde querem. Compram terrenos e usam muito do dinheiro que receberam para fazer um verdadeiro banco privado de terras. E, a partir do momento que têm as terras, remodelam a expansão urbana, e isso, frequentemente, gera aumento no valor da terra.
EC – Como funciona a expulsão de populações por ações dos empreendedores?
Boulos – Em São Paulo, existe um histórico sem precedentes dessa prática. O período mais crítico foi entre 2009 e 2011, em que houve um surto de incêndios em favelas. E qual era o argumento oficial? Era de que o tempo estava muito seco. Aí você vai ver o mapa das favelas que incendiaram e, curiosamente, 90% delas pegaram fogo nos corredores da especulação imobiliária. Então, quer dizer que o tempo fica mais seco nas regiões de avanço da especulação ou de interesse da especulação? O setor privado da especulação imobiliária é criminoso no sentido literal. Eles incendeiam favelas e passam por cima de quem estiver no meio do caminho. Porque pobre desvaloriza os empreendimentos. Não é que eles queiram o terreno da favela, o que não querem é os pobres perto dos condomínios. Portanto, na lógica do mercado, precisa tirar essa gente de lá num processo de higienização, de gentrificação, como queira chamar. Eles se livram de quem estiver no caminho.
EC – Até que ponto as obras da Copa e da Olimpíada contribuíram para isso?
Boulos – Colaboraram de dois modos, gerando, tanto pela expectativa quanto pelas obras em si, uma realimentação da especulação imobiliária nas cidades onde ocorreram. O Rio de Janeiro é um caso emblemático porque teve os dois eventos. Teve final da Copa, teve Olimpíada, já tinha recebido os Jogos Pan-Americanos. Acaba sendo um modelo neste sentido. Mas também contribuíram por despejos e remoções de forma direta, o que significa que milhares de famílias foram despejadas por causa dessas obras.
EC – Considerando a adesão e a urgência das reivindicações, o MTST e o MST são os dois movimentos de maior relevância no país?
Boulos – Os temas da reforma agrária e da reforma urbana são dívidas históricas do Estado brasileiro com o nosso povo. E cada vez mais as contradições se aguçam. Talvez, hoje, os movimentos que melhor simbolizam sejam justamente o MST, no campo, e o MTST, na cidade. Isso tem a ver, no caso das cidades, em especial, com esse processo recente de empoderamento incrível do setor da construção, por meio de crédito público, de subsídio público e com a regulamentação muito frágil, de modo geral, em que os planos diretores e os estatutos das cidades são aplicados de forma bastante seletiva, atendendo aos interesses do setor da construção, e, com isso, gerando nova onda de ocupação. Então, trata-se de um processo diretamente relacionado. As ocupações não são uma opção apenas dos movimentos, mas são resultado da falta de opção de milhares de pessoas, que, muitas vezes, são expulsas dos seus locais de moradia pela inflação do aluguel. Boa parte dos trabalhadores do Brasil paga aluguel nas periferias urbanas. Se o aluguel aumenta, o salário não aumenta igual. Então, qual a solução do camarada? Ele vai morar 20 quilômetros mais longe, em uma região ainda mais periférica, com serviço público ainda pior, demorando uma hora a mais para ir e voltar do serviço ou ele vai ocupar.
EC – O DEM e o PSDB o acusam de incitar a violência e formar milícias. Essas acusações possuem algum fundamento?
Boulos – Antes de mais nada, gostaria de dizer que esses dois partidos sofrem de um problema chamado povofobia, é uma turma que tem ranço histórico, medo e até ódio de povo. E tudo aquilo que é popular lhes incomoda. Aí, povo vira milícia, enfim, todo tipo de absurdo que eles queiram qualificar para fazer valer seus discursos. E descambam para o caminho da criminalização dos movimentos sociais. O MTST é um movimento social legítimo, que reúne milhares de famílias trabalhadoras no país e que são a cara da maioria do povo brasileiro. São famílias que pagam aluguel sem poder, que moram de favor em casas de parentes, que estão em áreas de risco, que estão em barracos. Essas são as famílias que vão ocupar. E vão ocupar não porque sejam do mal, não porque querem o que é dos outros, mas vão ocupar porque não têm outra alternativa de obter sua moradia. Um discurso muito comum para criminalizar o MTST e gerar uma antipatia social com o movimento é dizer: “se consegui minha casa, as pessoas têm de conseguir as suas”. O tal discurso meritocrático.
Foto: Igor Sperotto
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O MTST é o movimento que busca organizar essas pessoas na busca de uma alternativa que não seja o desespero individual, mas que seja uma alternativa coletiva
EC – Qual é o perfil do militante do MTST?
Boulos – Temos que partir de um entendimento de que uma boa parte do povo brasileiro, que ganha até dois ou três salários mínimos, que representa 70% do déficit habitacional do país, não tem condição de ir numa agência bancária e pegar um crédito de balcão. Ora, porque tem o nome sujo ou está endividado, ora, porque sua renda não permite. Se essas pessoas pudessem comprar uma casa, elas o fariam, não ficariam embaixo de lona com pé no barro com seus filhos numa ocupação. Fazem isso porque não têm outra alternativa. Inscrevem-se no Demhab, na Cohab ou seja qual for o órgão público responsável por habitações e ficam 20 ou 30 anos numa fila, esperando uma casa que nunca virá. Não têm como comprar. O Estado não provê por meio de um programa habitacional. Que alternativa resta para essas milhares de pessoas? O MTST é o movimento que busca organizar essas pessoas na busca de uma alternativa que não seja o desespero individual, mas que seja uma alternativa coletiva.
EC – Qual é a sua avaliação das iniciativas legislativas que vêm resultando na criminalização dos movimentos sociais?
Boulos – Para falar em criminalização dos movimentos sociais, é preciso dizer que nós temos, hoje, no país, uma ofensiva criminalizadora contra quem luta. E é preciso ser justo, isso não é apenas produto do golpe. O golpe vem acentuar isso. A lei antiterrorismo, que começa a ser aventada a aplicação contra movimentos sociais, foi de autoria do governo e sancionada pela presidente Dilma. Isso é ainda mais grave, porque trata-se de uma presidente que foi presa como terrorista durante a ditadura militar e tachada como tal, e depois foi torturada.
EC – A lei antiterrorismo foi resultado dos movimentos de 2013?
Boulos – Claro. O que motivou foram os movimentos de 2013 e a luta contra os efeitos da Copa, em 2014. Foi nesse cenário que surgiu a legislação. Dizer que a legislação antiterrorismo visava a alguma outra coisa que não a criminalização dos movimentos é hipocrisia. Basta ver o contexto internacional. Nenhum país do mundo que não tem histórico de atentados terroristas construiu uma lei antiterrorismo. Usaram um outro argumento do GAFI (Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo), que é um órgão internacional vinculado à ONU, de que o Brasil poderia sofrer sanções internacionais por ser filiado ao GAFI e não ter uma lei própria e específica antiterrorismo. Foi esse o argumento oficial que o governo usou. A maior parte dos países que fazem parte do GAFI também não possui lei específica antiterrorismo e nunca sofreu qualquer sanção. Não há histórico nesse sentido.
EC – Então, não se justifica, a não ser como instrumento de repressão…
Boulos – Todos os argumentos usados para criação dessa lei são furados. A grande verdade é que foi uma lei feita para a criminalização dos movimentos sociais e deverá ser utilizada nesse sentido, principalmente a gente tendo uma figura como Alexandre de Moraes no Ministério da Justiça. Não há muito de bom a se esperar. Usaram agora há pouco a lei das organizações criminosas contra o Movimento dos Sem Terra (MST). Enquanto dou esta entrevista, há militantes sem-terra presos em Goiás, entre eles, o Valdir, um dirigente nacional do MST, que foi preso aqui no Rio Grande do Sul e levado para lá (no dia 31 de junho, o intelectual e militante pela Reforma Agrária José Valdir Misnerovicz foi preso em Veranópolis/RS, em uma operação desencadeada pela Polícia Civil de Goiás e articulada com a Polícia do Rio Grande do Sul).
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EC – E por que a ofensiva criminalizadora deve se acentuar?
Boulos – A questão não é só o golpe, mas o programa do golpe. Esse pessoal vai querer aplicar, e já sinaliza isso, um programa de retrocessos nunca visto antes na história recente do país. A destruição da legislação trabalhista, previdenciária, a PEC do teto de gastos, que prevê redução dos gastos de saúde e educação, o desmonte dos programas sociais, liquidação da rede de proteção social já precária da Constituição de 1988. Essa turma quer fazer terra arrasada, quer fazer o Brasil andar 30 anos para trás em dois anos. Olha, fazer isso e achar que não vai ter resistência popular… E foi esse contexto minha fala e que, depois, entraram com um processo, dizendo que eu incendiava os movimentos. Mas o que disse é que alguém que propõe um programa desses, um programa não eleito e que jamais seria eleito, um programa sem legitimidade social, nem eleitoral, sofreria resistência; aplicar um programa desses na sociedade brasileira e achar que não vai ter reação é muita ingenuidade.
EC – Querem intimidar porque sabem que vem pressão popular?
Boulos – Sim. Ao mesmo tempo, para um governo que vai aplicar esse programa, sem legitimidade social, num período de recessão e desemprego, as demandas aumentam e não será capaz de atender a essas demandas, porque sua política consiste num ajuste fiscal e numa austeridade brutal, o que resta a este governo fazer? Reprimir. Penalizar. Teremos, portanto, um cenário perigoso no país no próximo período. Um cenário que tende, na minha avaliação, à construção de amplas mobilizações sociais de resistência ao ataque brutal aos nossos direitos, e que um governo como esse vai reagir com repressão.
EC – O governo Temer é subestimado quanto à sua periculosidade?
Boulos – O governo Temer é muito subestimado pelas pessoas, em geral. Dizem que é um governo fraco, que é refém da Lava–Jato, que não dura até 2018. Mas, olha, sou da opinião que, com todos os seus absurdos e suas inconsistências, o governo Temer é talvez o governo mais perigoso da Nova República para os trabalhadores. Sabe por quê? Porque ele não foi eleito por ninguém. Porque ele não pretende se reeleger e, portanto, não precisa prestar contas para ninguém. Só tem compromisso com o parlamento que o elegeu de forma indireta, que ele resolve distribuindo o butim. Tem compromisso com o capital que bancou o golpe e que ele vai resolver aplicando o programa que o capital sempre quis no país. O que o Temer perde eleitoralmente destruindo os direitos sociais no Brasil? Nada. Ele não é candidato.
EC – Questão de oportunismo?
Boulos – Nem mesmo um governo de direita eleito teria condições de fazer o que o Temer tem condições de fazer. Ele é o governo dos sonhos do capital. É um governo extremamente perigoso desse ponto de vista. Um programa como este só poderia ser aplicado com um golpe, pois jamais passaria pelo crivo das urnas. Jamais! Só um golpe teria condição de dar sustentação política a um projeto como esse. Por isso, fizeram dessa maneira. Eu não acho que o capital dá ponto sem nó. Eles não vão perder essa oportunidade histórica que criaram. Compraram o desgaste. Atacaram e feriram a democracia. Estão dando um “foda-se”, com o perdão da palavra, para a comunidade internacional e para quem quer que seja. E, vão para linha do pé-no-peito para impor retrocessos. Se isso vai passar ou não vai depender do tamanho da resistência que a gente conseguir construir nos próximos anos.