Aplicativos do século 21 obrigam a trabalhar como no século 19
Foto: Igor Sperotto
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Fotos: Igor Sperotto
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Fenômeno recente da uberização das relações de trabalho, ainda carente de estudos mais aprofundados, já demonstra um nível elevado de exigência de carga horária dos trabalhadores que buscam o sustento nos aplicativos. Não é necessário ser um expert em saúde do trabalho para prever que longas jornadas com poucos horários de descanso durante extensos períodos são nocivos à saúde de qualquer pessoa. Os primeiros sintomas e as primeiras vítimas já começam a surgir
No final do século 19, quando os trabalhadores franceses – homens, mulheres e crianças – trabalhavam até 17 horas diárias, o jornalista e escritor Paul Lafargue publicou o livreto Direito à Preguiça, onde sustentou que a jornada poderia ser reduzida para apenas 3 horas. Defendia que a vida das pessoas não deveria ser reduzida ao trabalho, sem haver tempo para a alegria, a saúde e a liberdade. Pois 140 anos depois, no Brasil, a partir da Reforma Trabalhista de 2017, muitos direitos foram perdidos. Entre o que é considerado retrocesso está a ampliação para até 12 horas diárias de trabalho. Na prática, muitos trabalhadores estão se vendo obrigados a trabalhar muito mais do que isto para levar um pouco de dinheiro para casa. A precarização das relações e condições de trabalho já está sendo chamada de “uberização”, em alusão ao mais famoso aplicativo multinacional de transporte, cujo modelo de distribuição de trabalho usado por diversas empresas de aplicativos que abarcam também outros serviços, como entregas (de carro, motocicletas e bicicletas) e vendas de produtos e serviços. Exaustos, doentes, mal alimentados, já há casos de óbitos como o do entregador de alimentos por aplicativo que morreu, há alguns meses, em São Paulo, após sofrer um Acidente Vascular Cerebral (AVC), aos 33 anos, durante o trabalho como motoboy.
Foto: Igor Sperotto
Em Porto Alegre, o motorista Marcos Roberto Martins Freitas, 52 anos, teve alta recentemente, após quase dois meses de internação, depois de um acidente de trânsito, na movimentada avenida Bento Gonçalves, em Porto Alegre. “Estava dirigindo, em 16 de dezembro, passei mal. Lembro de estar subindo a rua e apaguei. Acordei dias depois, no hospital”. Ficou sabendo que o que causou o acidente foi uma parada cardíaca. Foi socorrido na rua e teve mais três paradas em sequência. Marcos chegava a fazer 16, 17 horas por dia de trabalho. Para se alimentar, se valia de lanches, geralmente cachorro-quente. Além das contas de sempre como água, luz e telefone, também precisava desembolsar R$ 450,00 semanais para pagar o aluguel do carro em que trabalhava. Ele reconhece que, quando se acidentou, estava tenso. A filha Clarissa acompanha o pai desde o adoecimento e tem certeza de que ele é vítima do estresse no trabalho. “Ele se preocupava muito em conseguir dinheiro e nem sempre dava”. O motorista não sabe contar direito seu período de internação. “Fiquei sabendo depois, não lembro de nada. Quando acordei, perguntei o que tinha acontecido e me contaram que tinha batido o carro. Perguntei se tinha sido ontem e responderam que fazia 20 dias”. A alta foi em 4 de fevereiro, após ser diagnosticado com arritmia cardíaca e hipertrofia do coração. “O que fazer agora não sei. Tenho que primeiro recuperar minha saúde. Tentar reorganizar a vida”, diz ele, que conta com a ajuda dos familiares e amigos.
Quando o aplicativo Uber entrou no Brasil, em 2014, a empresa prometia ganhos de até R$ 7 mil mensais. Mas nunca falou na quantidade de horas trabalhadas necessárias. E a crise política e econômica que o país enfrenta atualmente elevou a taxa de desemprego, levando profissionais das mais diversas áreas a migrarem para os aplicativos de transporte. Sem direitos trabalhistas como descanso semanal remunerado, 13º salário e férias, têm de arcar com o desgaste do automóvel, gasolina e a própria alimentação. Não podem se dar ao luxo de ficar doentes. Se acontecer um acidente, como no caso de Marcos, as empresas não se responsabilizam por nada, embora fiquem, em média, com 25% de cada corrida. A maioria trabalha em uma precarização tão grande que sequer recolhe para o INSS. Nenhuma proteção, caso necessitem.
380 quilômetros em um único dia
Sérgio Francisco dos Santos, 68 anos, se aposentou há 21 anos. Há três está no Uber. “Eu me aposentei pensando em uma base salarial de R$ 7 mil. Mas hoje recebo R$ 2,5 mil”. O que era para ser sua garantia financeira, virou um complemento, pois hoje depende das corridas que faz pelo aplicativo para sobreviver. Já percorreu 380 quilômetros em Porto Alegre em um único dia. Começa a trabalhar às 6h e não volta antes das 18h. “Teve um dia que fui até as 21h. Cheguei tão cansado que o corpo tremia”. Mas considera necessário. “Sempre imaginei que não precisaria parar de trabalhar, mas que daria para diminuir o ritmo com a idade que estou. Infelizmente não é assim e não vejo perspectiva de que mude. Sigo trabalhando até meu corpo cansar”.
O uso de aplicativos para transporte começou há mais de 20 anos, nos Estados Unidos, como um sistema de partilhar o mesmo veículo. As pessoas combinavam as viagens no mesmo carro usando aplicativos. A partir daí, surgiram os programas de cobrança por viagem, com pessoas trabalhando nisto nas suas horas de folga. No Brasil e em outros países com alta taxa de desemprego, passou a ser alternativa para a falta de trabalho. E a realidade diária destes trabalhadores é de precariedade e perigo. Sequência cotidiana de condições subumanas de horário, de rotina, de trabalho. Saem para rua para trabalhar em total insegurança, não só no trânsito. “Mas sem saber o que pode acontecer em termos de pessoas que embarcam no carro”, revela Luís Fernando Tybusch, motorista no Uber há três anos, depois de um período desempregado.
Tybusch também já enfrentou dificuldades como motorista de aplicativo. Ele estava com seu carro zero km há apenas quatro meses quando, ao pegar uma cliente, se envolveu em um acidente de tráfego. Ficou com o prejuízo. “Fiquei sem trabalhar, parado 35 dias em casa, sem dinheiro no bolso, com as contas todas pra pagar. Não tem como cobrar do Uber”. Manutenção, desgaste, sinistro, tudo que seja relativo ao trabalho o motorista que paga. “Uber não se envolve com nada, nem com morte, doença ou assalto, nada”. Usar banheiro, se alimentar, descansar, direitos de um trabalhador, não fazem parte do cotidiano dos motoristas de aplicativo. “Meu dia é assim, levanto às 5h30, saio às 6h para trabalhar, sirvo uma marmita, coloco no porta-luvas. Não como na rua para não gastar. Toco praticamente direto 10, 12 horas. Banheiro, uso em postos de gasolina. Às vezes, tem gente que não deixa, mas a maioria empresta o posto. Minha alimentação é dentro do carro. Paro em um lugar seguro, para não sofrer um assalto”. Ele costuma trabalhar de 12 a 15 horas por dia para tentar fazer um dinheiro razoável, de R$ 250,00 a R$ 300,00 por dia”. Como fica muito tempo fora de casa, a esposa reclama. Mas ele disse que precisa trabalhar cada vez mais em função da concorrência, que aumentou. “Hoje o Uber está com muitos motoristas. Muita gente que tem um carro na garagem procura uma renda desta forma, tanto o desempregado quanto para fazer bico. É uma concorrência grande, tu te obriga a trabalhar de 12 a 15 horas”.
Frotistas chegam a terceirizar aluguel de mais de cem veículos
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Quando surgiu, há mais de dez anos, o transporte por aplicativo era uma alternativa ao mercado tradicional, considerado caro e ineficiente. Uber foi o primeiro a entrar no mercado e é o mais forte. Muitas pessoas usam o nome para se referir a outros aplicativos na praça, como 99 Pop, Cabify e In Driver. O interior utiliza muito o Garupa. E existe diferença entre eles, na forma de trabalhar, de aceitar motoristas. São Paulo é o estado que mais utiliza este tipo de transporte. Rio Grande do Sul é o segundo. Não existe uma estatística de quantos carros estão cadastrados em Porto Alegre, mas há estimativa de 32 mil. Há pessoas com frotas cadastradas. “E não podemos falar nada de mal deles, porque estão dando trabalho para desempregados que não têm condições de comprar um carro”, observa o motorista Mauro Tonding, que conhece um cidadão com 18 veículos no aplicativo. “Tem gente com até 110 veículos”, completa. Algumas pessoas compraram carros para aplicativos. Alugam para motoristas que não têm crédito e não podem locar oficialmente, não têm crédito, não têm cartão de crédito, não têm nome para isto. Muitos alugam direto, com algum tipo de garantia, até por um valor adiantado e, às vezes, terminam alugando por um valor maior. Esta é uma situação que se tornou comum. Há pessoas que tem dois, três carros para alugar. Também há os que alugam 12 horas para um, 12 horas para outro.
Em artigos e entrevistas, o economista e professor da Universidade de Campinas (Unicamp) Márcio Pochmann revela que a intensificação e extensão da jornada são marcas das novas relações de trabalho. E afirma que a nova realidade representa regressão, pois resulta em uma carga horária anual próxima ao que era exercida no século 19.
Ano passado, o sociólogo Clemente Ganz Lúcio apontou que a Lei 13.467/17 promoveu extensa mudança na legislação trabalhista brasileira. Em artigo publicado no Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), descreve que “as reformas trabalhistas feitas no mundo depois de 2008 visam criar um ambiente favorável à flexibilização das relações laborais e dos sistemas de relações do trabalho, buscam a redução do custo do trabalho, a redução de riscos e acúmulo de passivos trabalhistas, novas formas de contrato de trabalho, de jornada e salários maleáveis, baixa interferência da Justiça do Trabalho e manutenção, quando necessários, de sindicatos frágeis ou inúteis”.
Sem escolha
Foto: Igor Sperotto
O motorista Mauro Tonding passou 22 dos seus 54 anos de existência trabalhando com vendas. Carteira assinada, com todos os direitos assegurados e um bom salário no final do mês. Chegou a ter cargo de gerente de área e coordenador de equipe. Viajou por todo o país. A idade o afastou da atividade. “Ter 50 anos hoje é algo que pesa bastante no mercado”. Há um ano e três meses está no aplicativo Uber. “Vários amigos e conhecidos estão como eu. Se desempregaram, não conseguiram mais manter o salário de antes e o Uber surgiu”. Dirige seu próprio carro, que ainda está pagando, para trabalhar. Não tem nenhuma garantia trabalhista e não paga INSS. “Na hora em que fui trabalhar no Uber já sabia disto, mas isto é o que menos me preocupa porque, pela nova lei, mudou muito, as empresas não estão assinando carteira, querem que monte empresa e preste serviço. E sei que não vou me aposentar”. Geralmente ele começa a trabalhar às 5h e vai até 19h30. Segunda a sexta. Sábado vai até o meio-dia. É pesado, ele admite. “Mas é a única oportunidade de ganhar dinheiro”. Não recusa corrida. “Estou em uma situação que não posso escolher”.
Cada um por si
O professor e pesquisador da Universidade de Campinas (Unicamp) José Dari Krein analisa que, após o Brasil ter vivido um crescimento de postos de trabalho entre 2004 e 2014, com ganhos efetivos de remuneração, a crise instalada a partir de 2015 deu força ao discurso da flexibilização, que retira proteção social para garantir trabalho. “Empreender é só um eufemismo para jogar a responsabilidade de sucessos e fracassos em cima do indivíduo”. Para ele, trabalhadores uberizados são assalariados, não microempreendedores. “É política a condição de vulnerabilidade, de irregularidade, de nenhuma proteção social”, destaca, ao referir que, no governo atual, o mercado de trabalho ideal é um mercado sem direitos. Mais do que uma dinâmica econômica, assinala, as situações de trabalho e de emprego passam por questões políticas.
O professor destaca que atualmente os trabalhadores estão mais sacrificados do que nos anos 1960, quando um operário ganhava 30 vezes menos que o diretor da empresa. Hoje ele ganha 296 vezes menos diz, apontando o acirramento da concentração de renda. “Esta é a sociedade construída no período mais recente, que retirou as formas de proteção social que não fossem assalariamento”, destaca. Mas considera que não se trata de uma situação irreversível. “Estamos em um sistema capitalista, que assalaria as pessoas”. Regulamentar o trabalho uberizado é para ele uma necessidade de curto prazo, pois as extensas horas de trabalho colocam em risco motoristas, passageiros e os transeuntes de via pública, ou seja, toda a sociedade. Para Krein, é mais fácil regulamentar a uberização do que o trabalho na área têxtil, por exemplo, pois o aplicativo já traz todas as informações, com extremo detalhe, da atividade realizada. Krein argumenta que a regulamentação não ocorre por conta do pensamento político vigente. “Cresce a quantidade de pessoas obrigadas a trabalhar mais de 49 horas semanais, se criou politicamente isto”. Para ele, o problema poderá ser resolvido com investimentos em setores como saúde, educação e outras áreas que garantam qualidade de vida para as pessoas. “Hoje não se oferece uma saída articulada, as respostas não são coletivas, é cada um por si”.
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