SAÚDE

A política de exclusão e morte dos planos de saúde

ENTREVISTA | CAROLINA NADALINE
Por Gilson Camargo / Publicado em 12 de agosto de 2022

Envios diários

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A necropolítica dos planos de saúde

Foto: Foto: Acervo Pessoal

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Pressionados pelo poderoso lobby dos planos de saúde, ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) modificaram uma posição histórica e aprovaram, no início de junho, a taxatividade do rol de ‘eventos em saúde’ que as operadoras devem disponibilizar aos usuários. Com isso, a lista definida pela Agência Nacional de Saúde (ANS) e disponibilizada administrativamente ou por via judicial a grupos de pacientes com deficiência que necessitam de atendimento especializado para a manutenção da vida deixa de ser exemplificativa. Passa a valer o que está no rol, o que equivale a uma sentença de morte ou, no mínimo, de precarização da vida para milhões de usuários da saúde complementar, alerta a advogada especializada no atendimento de autistas e Coordenadora Jurídica do Instituto Lagarta Vira Pupa, Carolina Nadaline. Pós-graduada em Direitos Fundamentais pela Faculdade de Direito de Coimbra e em Transtorno do Espectro do Autismo pelo Child Behavior Institute (Miami) e pós-graduanda em Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito Constitucional, Caroline, que é autista e mãe de autista, explica nesta entrevista que a decisão do STJ já se reflete no corte de procedimentos, desligamento de aparelhos e suspensão de homecare de pacientes terminais. “De fato, é uma desumanidade que cristaliza o preconceito e remete à necropolítica. Para o mercado, para a economia, para a sociedade, a vida da pessoa com deficiência não é vista com a mesma grandeza de vida dos demais”, constata.

Extra Classe – Como entender a extensão do que os ministros do STJ decidiram, no dia 8 de junho, ao tornar taxativo o rol da ANS que define os serviços de saúde que as operadoras devem cobrir?
Carolina Nadaline – Há 20 anos se entende que essa lista de procedimentos é mínima, ou seja, exemplificativa. Caso haja a determinação pelo médico de um outro tratamento, isso poderia ser requerido tanto via administrativa, direto ao plano de saúde, quanto através de uma medida judicial, mediante provas da eficácia e da necessidade do tratamento. Sempre existiram grandes chances de se obter esse tratamento por determinação judicial. A partir de 2019, há uma mudança no posicionamento de alguns setores do Judiciário.

EC – Por quê?
Carolina – Os planos de saúde sempre defenderam que essa lista era máxima, ou seja, um rol taxativo e que aquilo que não está no rol não deve ser prestado pelas operadoras de saúde. E a gente vê esse entendimento começar a ganhar corpo no Judiciário brasileiro, notadamente em um dos colegiados do STJ, com destaque para o ministro Luís Felipe Salomão. Ele modificou seu entendimento de longa data e votou pela taxatividade.

EC – Os advogados dos planos de saúde comemoraram o resultado do julgamento de forma acintosa nas redes sociais…

Carolina – Fica muito claro um trabalho muito  bem feito pelos escritórios de advocacia que representam os planos de saúde, um trabalho muito bem feito e orquestrado no sentido de convencimento do Judiciário sobre a tese da taxatividade. Esse assunto tem sido martelado ao longo de anos e, de alguma maneira, foi causando convencimento de alguns órgãos importantes do país. A gente não consegue saber por que o Judiciário mudou o seu entendimento, mas existe esse trabalho orquestrado, existe o lobby e a gente percebe que, de certa forma, eles têm alcançado êxito com esse canto da sereia, com esse argumento de que os planos de saúde estão com riscos financeiros, estão à beira de quebrar, que a judicialização é um absurdo e assim por diante.

EC – Na prática, é uma decisão que coloca em risco a vida de quem mais precisa de atenção médica. É desumano, não? Carolina – De fato, é uma desumanidade. Concerne tanto às políticas públicas quanto econômicas. São vidas que parecem não importar para os planos de saúde, por serem consideradas pouco produtivas.

A necropolítica dos planos de saúde

Foto: Rafael Luz/ STJ/ Divulgação

Sessão do STJ que aprovou o Rol Taxativo, em junho

Foto: Rafael Luz/ STJ/ Divulgação

EC – Como assim?
Carolina – Aqui, a gente se depara com uma questão não só dos planos de saúde, mas do fato que as vidas das pessoas com deficiência de forma geral são assim consideradas pela sociedade. Isso faz parte da luta anticapacitista, da luta antimanicomial, da luta pela inclusão, na tentativa de quebra desse paradigma de que pessoas com deficiência têm uma vida menos plena, uma vida menor, uma vida diminuída. Isso tudo, obviamente, está muito ligado à capacidade produtiva da pessoa com deficiência, por ela produzir de modo diferente e em quantidade diferente, o que nem sempre é verdade e não pode ser colocado dessa maneira. É um argumento que é muito relacionado ao preconceito em si.

EC – A lógica da necropolítica?
Carolina – Para o mercado, para a economia, para a sociedade, a pessoa com deficiência não é vista como a mesma vida, como a mesma grandeza de vida das pessoas em geral. Acho que as coisas hoje se agravam nesse contexto de necropolítica, de necrocapitalismo, no sentido de que se instala tanto em nosso país como no mundo um capitalismo que cada vez mais lucra com a morte e com o sofrimento das pessoas. A gente viu isso muito claramente na pandemia e nós vemos nessa questão do rol taxativo e em tantas outras políticas públicas relacionadas ao direito à saúde, ao direito à vida.

EC – A posição do STJ deve influenciar instâncias inferiores?
Carolina – Existe a interposição de um recurso chamado embargos de divergência, que serve para pacificar o entendimento e que, embora não tenha efeito vinculante, ou seja, não é um entendimento obrigatório para os demais juízes e tribunais do país, ele é um entendimento determinante de pacificação, de consenso e orientação dentro do STJ, que é um órgão de cúpula, responsável por julgar os recursos especiais, que são os recursos finais de qualquer processo. Esse recurso vai encaminhando para o seu julgamento a partir de setembro passado, quando o ministro Salomão votou pela taxatividade do rol. Logo em seguida, a ministra Nanci Andrighi pediu vistas e o julgamento foi suspenso, retornando em fevereiro de 2022, data em que a gente viu uma manifestação histórica e inédita em frente ao STJ, quando mães do Brasil inteiro foram a Brasília e se acorrentaram na frente do Tribunal.

EC – O que ela defendeu?
Carolina – A ministra demonstrou que o rol é e deve continuar sendo exemplificativo ao fundamentar seu voto no direito à saúde, no direito do consumidor, na não abusividade dos contratos, na assunção de riscos pelos planos de saúde. E, de forma decisiva, ela trouxe argumentos contábeis e financeiros que demonstram a mentira do argumento de que os planos de saúde estão correndo qualquer tipo de risco financeiro, de equilíbrio econômico. Nesse sentido, ela ressaltou os lucros recordes do setor nos últimos anos.

EC – Os planos de saúde atraíram quase 2 milhões de novos usuários na pandemia e tiveram um aumento de R$ 10 bilhões na receita em 2021, totalizando um faturamento de R$ 239,9 bilhões.

Carolina – É um setor que, mesmo num ambiente adverso de crise econômica, de pandemia, vem sendo marcado por lucros sucessivos e recordes sucessivos nesses lucros, de sorte que não há o que se falar em qualquer tipo de perigo financeiro para os planos de saúde. Se trata, na verdade, de obter mais lucros do que já se tem.

EC – Mas o placar da votação demonstra que o argumento convenceu parte da Corte…
Carolina – Fomos surpreendidos com o placar, digamos, de lavada, de seis votos a favor da taxatividade do rol e três votos a favor da exemplificatividade, sendo que muitos ministros que, durante toda sua vida, entenderam dessa forma e, dois dias antes, tinham votado pela exemplificatividade do rol mudaram de forma totalmente surpreendente seus entendimentos. E, como a gente tem argumentado, com fundamentos que não se sustentam, sobretudo preocupados com a saúde financeira dos planos de saúde quando não existe qualquer indício que os planos estejam correndo qualquer risco.

EC – Na prática, o que eles decidiram?
Carolina – Neste julgamento do dia 8, o STJ firmou tese no sentido de que o rol é taxativo, mitigado, portanto, em situações excepcionalíssimas nós poderíamos obter uma decisão judicial. Porém, já existem várias críticas em relação aos requisitos que deverão ser comprovados, uma vez que esses requisitos são, na verdade, os trabalhos de Hércules. A gente chama em Direito “prova diabólica”, uma prova impossível de se fazer e de se obter. Os critérios são dificílimos e foram feitos realmente pra negar o acesso à justiça. Esse é o panorama.

A necropolítica dos planos de saúde

Foto: Instituto Lagarta / Divulgação

Durante protesto, usuários de planos de saúde se acorrentaram ao prédio do STJ

Foto: Instituto Lagarta / Divulgação

EC – Cabe recurso, mas a decisão expressa o entendimento do STJ, que é a instância final da maioria das ações envolvendo planos de saúde.
Carolina – A decisão não é vinculativa, ou seja, ela não é automática para todos os juízes e tribunais do Brasil, mas é uma decisão de órgão de cúpula e orienta a posição dos tribunais e dos juízes do país inteiro, sendo que, como consequência, nós vimos já a negativa de liminares, processos sendo julgados improcedentes. Cada dia mais, tratamentos que haviam sido concedidos administrativamente sendo tirados. Nós estamos falando de oxigênio, de homecare, de bomba de insulina e de tudo aquilo que a gente imagina de gravíssimo. Ontem mesmo (dia 7 de julho) teve hospital especializado no tratamento do AVC sendo descredenciado por plano de saúde porque a prática deles não constaria do rol da ANS.

EC – As consequências são trágicas e muito graves. Por quê?
Carolina – Essa decisão afeta diretamente a saúde dos usuários. Coloca em risco a vida. Nós já vimos vários procedimentos seriíssimos sendo cortados. Estamos falando de tratamento de câncer, tratamento de pessoas com AVC, com diabetes, com doenças raras e pessoas com deficiência. Os grupos mais vulneráveis da sociedade e grupos em que aquele tratamento indicado pelo médico pode significar a vida ou a morte da pessoa. Então, não existe tempo. A gente tem pressa de uma decisão justa, de uma organização justa das coisas. E, além de colocar em risco a vida desses pacientes, existem grupos para os quais determinadas terapias e tratamentos significam sobrevida e qualidade de vida. É importante dizer que essa qualidade de vida não é qualquer coisa. Nós estamos falando de grupos de pessoas com síndromes raras, com determinados tipos de deficiência para as quais determinadas terapias significam ter um mínimo de autonomia ou ficar numa situação extremamente devastadora, triste e de grande sofrimento.

“Essa decisão afeta diretamente a saúde dos usuários. Coloca em risco a vida. Nós já vimos vários procedimentos seriíssimos sendo cortados. Estamos falando de tratamento de câncer, tratamento de pessoas com AVC, com diabetes, com doenças raras e pessoas com deficiência”

EC – Quais grupos?
Carolina – Nos casos de deficiência como paralisia cerebral, deficiência intelectual e outras, Síndrome de Down, em que a falta de tratamento no momento adequado vai significar uma vida muito difícil, de dependência, de não conseguir trabalhar, de não dar conta de tarefas mínimas do dia a dia. A situação é muito séria. A gente tem esses grupos mais prejudicados, mas também estamos falando dos 50 milhões de usuários de planos de saúde e todos os usuários do SUS. Portanto, é um assunto de saúde pública e não só das pessoas que necessitam desses tratamentos.

EC – Pessoas com autismo conhecem bem essa privação.
Carolina – Esse tema tem sido levantado dentro da comunidade autista, uma vez que nós somos grandes usuários dessas terapias que não estão contempladas no rol da ANS e que, portanto, sempre precisamos judicializar para obter esses tratamentos. Embora tenha ocorrido isso, o fato é que essa decisão serve para todos os brasileiros. Serve para os 50 milhões de usuários dos planos de saúde e para a população que não conta com saúde complementar. Ela tem efeitos para todos.

A necropolítica dos planos de saúde

Foto: Instituto Lagarta/Divulgação

Manifestantes contra o Rol Taxativo em vigília diante do STJ

Foto: Instituto Lagarta/Divulgação

EC – Ou seja, a bomba vai estourar no SUS?
Carolina – A gente precisa considerar que, em geral, as pessoas não querem usar o plano de saúde, mas ninguém sabe o que a vida vai reservar. Então, você passa a vida inteira pagando plano de saúde e chega o momento em que vai precisar de um tratamento específico e não vai ter. Essa é a ideia da mutualidade do plano de saúde. Mas não podemos desconsiderar também que a partir do momento em que nós não podemos buscar o plano de saúde, com absoluta certeza vai restar a obrigação do Estado pelo Sistema Único de Saúde. De uma forma ou outra, a gente vai ter impactos severos em cima do sistema de saúde pública, o que, na verdade, vai gerar uma coisa única no mundo que é o Estado sendo garantidor do lucro das empresas privadas. Um triplo subsídio dos planos de saúde, um negócio totalmente sem risco, algo que não existe no mundo.

EC – Como enfrentar o lobby dos planos de saúde?
Carolina – As operadoras têm uma força financeira muito grande. Existe um trabalho estruturado tanto dos escritórios de advocacia quanto de uma advocacia, quer dizer, de um trabalho de convencimento de todos os poderes públicos. Seus interesses não são representados só no Judiciário, mas também nos executivos, nos legislativos, no plural, porque a gente está falando de um trabalho grande que é feito não só em nível de Congresso Nacional e Poder Executivo Federal, mas em todas as esferas dos entes federados. Em qualquer organização a gente vai encontrar representação dos planos de saúde. Com relação à paridade de poderes, a gente precisa entender que os usuários não têm o mesmo poder. As instituições que representam o consumidor, as pessoas com deficiência e das mais diversas condições e patologias, elas não têm a mesma força financeira e de estrutura que os planos de saúde e que, embora a gente consiga fazer muito barulho nas redes sociais e nas manifestações, o lobby dos planos de saúde atua diariamente de forma silenciosa e extremamente organizada. É muito difícil para as entidades e para o consumidor competir com esse trabalho.

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EC – O que acontece agora?
Carolina – Várias ações foram propostas junto ao STF, de relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, que marcou uma audiência pública  para os dias 26 e 27 de setembro, na qual deverão ser ouvidas autoridades técnicas, especialistas das mais diversas áreas para poder entregar subsídios, informações aos ministros sobre o tema, informações que escapam à questão jurídica em si. Estamos falando de questões técnicas, de contabilidade, de cálculos autuariais, financeiras e econômicas, dos direitos e da realidade da pessoa com deficiência e com as mais diversas síndromes e condições de doenças, de questões médicas, científicas, que realmente precisam ser amadurecidas, expostas. Algumas verdades que precisam ser restabelecidas, porque tudo que ocorreu até agora foi em cima de um argumento mentiroso, falso, do risco financeiro. Tenho certeza que essas audiências públicas servirão para provar de uma vez por todas que esses argumentos dos planos de saúde não se sustentam.

EC – Por que o Congresso Nacional silenciou?
Carolina – Esse é um assunto que poderia e deveria ter sido resolvido há muito tempo. O que eu vejo, enquanto advogada, é que na política a gente precisa de mobilização social e pressão para que o Congresso tome essas medidas, principalmente medidas regulatórias contra setores muito fortes da economia, como os planos de saúde. Política é como feijão, só cozinha na base da pressão. De certa forma, o que sempre existiu foi falta de pressão popular, mesmo porque o entendimento do Judiciário era tranquilo e pacífico com relação à exemplificatividade. Não havia qualquer dúvida. Não se via necessidade de urgência de uma legislação para dizer aquilo que já era entendido por todos.

[Nota do editor: a entrevista foi realizada antes da aprovação do Projeto de Lei 2033/22, na Câmara dos Deputados que estabelece hipóteses de cobertura de exames ou tratamentos de saúde que não estão incluídos no rol de procedimentos e eventos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). A matéria ainda deverá ser avaliada pelo Senado. Leia atualização.]

EC – A ANS, enquanto órgão regulador, não deveria proteger os consumidores de abusos por parte das operadoras?
Carolina – Por lei, o papel da ANS é proteger o consumidor e determinar um bom cumprimento dos contratos dos planos de saúde. Mas a realidade é que, notadamente nos últimos cinco anos, a ANS foi, digamos, aparelhada, encampada por um entendimento pró-plano de saúde. Hoje, ao invés de ser uma agência de proteção ao consumidor, de proteção à saúde dos brasileiros, ela é uma agência voltada à proteção dos lucros dos planos de saúde.

EC – Como a senhora avalia os reajustes praticados pelas operadoras?
Carolina – São abusivos. Já estão sendo judicializados ou discutidos judicialmente no país todo. Temos reajustes que vão de 75% a 125%, notadamente em planos de pessoas com deficiência, e que passam longe de qualquer possibilidade de aceitação. São simplesmente os maiores reajustes da história dos planos de saúde no país e que vão gerar muita discussão judicial, porque são notadamente abusivos.

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